Hoje é o dia de Portugal, dito de Camões e das comunidades portuguesas, data que já foi dia da raça, quando a raça, antes de ser higienista e racista, ainda era III República Francesa, muito à maneira da positivista trilogia de Taine, fundadora do naturalismo sociologista do último quartel do século XIX. Quando, à direita e à esquerda, se aceitava a existência de um conjunto de caracteres biológicos transmitidos hereditariamente, porque as tradições, as crenças, os hábitos mentais e as instituições modelariam os indivíduos, tal como se ensaiava no eugenismo e se admitia nos criminologismos de Lombroso, antes de haver campos de concentração para judeus, japoneses, alemães, negros, ciganos, contra-revolucionários, aborígenes, fundamentalistas, párias ou comunistas.
Aliás, raça vem do indo-europeu wrad, raiz, através do italiano razza. Aquilo que, no plano biológico, se definia como um conjunto homogéneo de seres humanos caracterizados por uma série de traços hereditários, com destaque para a cor da pele, mas também atendendo a outros elementos como os cabelos, a forma da cabeça, os traços faciais, etc. O que gerou até a uma classificação dominante, de origem francesa, que refere a tripartição entre brancos, amarelos e negros, mas que, a partir de 1934, com Von Eicksted, levou até que se distinguissem os europeus, os negros, os mongóis, os australóides e os ameríndios.
Por mim, herdeiro de uns mestiços mediterrânicos que chegaram a Portugal no século XIX e que aqui se juntaram a cristãos novos e velhos, fazendo acrescentar complexidade a essa aventura de genes do moçarabismo paleocristão, a que me orgulho de pertencer, recordo-me sempre de pôr a minha mão pretensamente branca ao lado de uma mão chinesa, em plena aula sobre a matéria, em pleno Extremo-Oriente, para reparar que os pretensos brancos eram os amarelos e que eu não passava de um pele vermelha, a quem os outros chamavam diabo.
Por isso, recordo que William C. Boyd (1950) tratou de enumerar o grupo europeu primitivo (p. ex. Bascos), o grupo europeu (caucasóide), o grupo africano (negróide) o grupo ameríndio (mongolóide) e o grupo australóide. Só que, em 18 de Julho de 1950 a UNESCO emitiu uma declaração sobre a natureza das raças e das diferenças raciais, onde caíram por terra os erros científicos em que se baseavam tais tretas ideológicas.
Basta recordar o chamado racismo, concepção segundo a qual existem raças superiores e raças inferiores e que estas devem submeter-se àquelas, pelos que as superiores teriam que evitar misturar-se com as outras, para que se mantivessem puras e até se melhorasse, conforme qualquer rebanho de carneiros ou vacas.
O racismo teórico contemporâneo começa com Arthur de Gobineau (1816‑1882), antigo chefe de gabinete de Tocqueville, quando este foi ministro dos negócios estrangeiros francês, que, em Essai sur l’Inegalité des races humaines, publicado entre 1853 e 1855, defende que a raça branca e, dentro desta, a raça ariana devem ser as raças superiores e dominadoras.
Uma opinião partilhada por outros autores da época como Victor Courtet (1813‑1867) em La Science Politique fondée sur la Science de l’Homme, ou l’Étude des races Humaines sous le Rapport Philosophique, Historique et Social, e Vacher de Lapouge.
Este último, professor em Montpellier, em L’Aryen et son Rôle Social, de 1899, chega mesmo a propor a criação de uma nova ciência, a antropossociologia, baseada na luta darwiniana pela sobrevivência da espécie. Porque as raças dolicocéfalas dos louros devem ser senhoras e dominadoras das raças braquicéfalas, defendendo, para o efeito, a prática da selecção biológica.
Este ambiente vai ser também assumido por Houston Stewart Chamberlain (1855‑1929), um inglês naturalizado alemão, genro de Richard Wagner, que em As raízes do Século XX, de 1899, vem considerar que os teutões (os celtas, os eslavos e os germanos) é que caldearam as raízes gregas, romana e judaica da civilização ocidental, chegando a defender a intervenção do Estado no processo de desenvolvimento biológico da raça dos senhores.
Para o fundador do nacionalismo basco, Sabino Arana a essência da nação, a condição necessária para que ela exista é a raça, o sangue ‑ sangue ou raça diferentes de outras humanas colectividades…O modo de ser de cada raça exige para o seu desenvolvimento absoluta liberdade
Este cientismo positivista, misturado com o romantismo político, desagua nas teses assumidas por Adolf Hitler em Mein Kampf constituindo o eixo fundamental do nacional-socialismo que sobe ao poder na Alemanha em 1933.
Um caso especial de racismo é o processo do anti-semitismo. Racistas são também as teses do colonialismo e do apartheid. Não menos racistas são alguns dos movimentos políticos anticolonialistas desde a negritude às teses de Frantz Fanon ou os que, ainda hoje, seguindo Charles Darwin, consideram que a causa de todos os nossos problemas actuais é a ideia liberal de que o Homem pode desobedecer a leis naturais. Normalmente, acabam seguranças em discotecas, mas podem ser professores universitários e chefes de partidos políticos.
De facto, na base dos nacionalismos contemporâneos, esteve, sem dúvida, o objectivismo germanista, onde Fichte tentou responder ao chauvinismo napoleónico, gerando a caminhada idealista dos mestres pensadores que hão-de conduzir ao Reich. E foi contra este modelo que os franceses procuraram responder com o subjectivismo do republicanismo místico, a partir de Renan.
Geravam-se assim duas perspectivas de nação que, na respectiva contradita, se irmanaram, não reparando que se tornavam inimigas daquele nacionalismo que pretendia, e pretende, assumir o culto da diferença, reclamando a possibilidade do small is beautiful, principalmente das unidades nascidas gradualmente através do evolucionismo espontaneísta, como são as nações originárias dos velhos reinos medievais.
O nacionalismo francês, de matriz jacobina, republicanista e democratista, gerou um novo iluminismo cidadinista que, em nome do Estado, destruiu os direitos naturais e originários. Deste modo, eis como um cidadanismo massificado acabou por destruir o libertacionismo individualista, quando transformou o indivíduo portador de direitos naturais e originais num cidadão dotado de direitos civis concedidos pelo Estado.
Por seu lado, o objectivismo, que teve como matriz o culturalismo germânico, apontou para uma nação linguística e étnica, tendo como consequências o nacionalismo zoológico do racismo hitleriano.
O primeiro teve como consequências a centralização política, administrativa e cultural, promovida pela burocracia, pelo exército de conscrição e pela escola pública obrigatória, com os seus livros únicos.
O segundo gerou as teorias do espaço vital, a teoria dos grandes espaços com Estado director, com as anexações e as conquistas.
Ambos acabaram por provocar a tirania racional e o consequente terrorismo de Estado.
Se, para um francesista republicano, passámos a ter a nação democrático-universalista baseada no pacto social, já, com o germanismo, surgiu o conceito de nação linguístico-cultural e étnico.
O conceito de nação varia conforme o tempo, o espaço e a unidade política que o pretende invocar. Na realidade, cada nacionalismo é sempre marcado pelos mais variados paradigmas, conforme as circunstâncias. Todos tendem para o futuro e todos tentam acreditar numa idade de ouro passada, procurando restaurar uns quaisquer anos de glória que teriam, outrora, acontecido. E lá vão falando no passado ou no presente de acordo com as conveniências dos fins, ora dizendo, de forma conformista, que a história é que faz a nação, ora replicando que é a nação que faz a história.
De facto, o nacionalismo tanto pode invocar o passado, o regresso às origens com o respectivo culto pela tradição, como provocar um construtivismo progressista e reformador. Tanto pode iluminar conservadores como revolucionários; tanto pode ser liberal como autoritarista; tanto pode pugnar pelo centralismo como pela descentralização.
Os fins de qualquer nation building justificam, com efeito, todos os meios e instrumentos ideológicos, pelo que, neste sentido, o romantismo nacionalista, neste sentido, também é, paradoxalmente, maquiavélico. Mesmo, a nível português, eis que, em nome do nacionalismo, tanto se defendeu o Portugal do Minho a Timor, pluricultural e pluri‑racial, como agora se defende um Portugal uniformemente cultural, sem minorias nacionais.
O nacionalismo foi defendido por idealistas e racionalistas, por românticos e utilitaristas, por individualistas e culturalistas. Os franceses napoleónicos influenciaram o discurso nacionalista de Fichte; mas é também o romantismo alemão que vai, depois, dar alento ao nacionalismo místico francês; os portugueses nacionalistas provocaram os movimentos de libertação angolanos, tal como os romanos acirraram a identidade dos lusitanos e os jesuítas filipinos fomentaram as conspirações dos manuelinhos de Évora e coleccionaram argumentos que vão, depois, ser brandidos pelos juristas da restauração.
O conceito de nação situa‑se, com efeito, na zona de fronteira entre a história e a poesia. Uma história concebida como o género literário mais próximo da ficção, como, noutro contexto, referia Armindo Monteiro, ou uma poesia mais filosófica que a história, conforme as palavras de Aristóteles.
A nação é, pois, uma manifestação dessa terceira dimensão da sociabilidade. Mas porque é um sonho de futuro partilhado (Georges Burdeau), há tantos conceitos de nação quantos os sonhos desses diversos povos nacionais. E mesmo cada povo nacional vai variando de sonho conforme os respectivos instintos de legítima defesa. Ora, é nessa variedade, feita à imagem e semelhança da própria personalidade humana, que se encontra o essencial da respectiva universalidade.
Com efeito, só existe uma nação quando um qualquer povo atinge a dimensão de entidade impossível de repetir‑se. É que, como assinala François Perroux, os espíritos nacionais distinguem‑se uns dos outros conforme a representação que fazem de si mesmos. O mito, como dizia o nosso Fernando Pessoa, é um nada que é tudo.
Como cada nação é sempre um grupo humano mais a sua circunstância, que tanto encara mitologicamente o respectivo nascimento e crescimento, como visiona poeticamente o seu futuro, eis que se torna absolutamente impossível capturar racionalmente um conceito geral e abstracto de nação, válido para qualquer espaço e para qualquer tempo.
Os ensaios jurídicos, politológicos e filosóficos que tentam aprisionar o conceito de nação são, portanto, normalmente inconsequentes quanto à obtenção de um conceito intemporal e universal de nação, válido para qualquer espaço e para qualquer tempo.
Cada nação é sempre um determinado grupo humano na sua circunstância política, onde confluem as três unidades do tempo em dialéctica, ora se encarando as origens de forma mitológica, ora perspectivando-se o futuro, de forma sonhadora. Torna-se assim impossível que os textos jurídicos sejam capazes de capturar a fluidez do nacional, dado que este exige sempre uma porta aberta para o imaginário.
Como a este respeito, observava Harold Laski, o nacionalismo é uma concepção subjectiva que escapa a qualquer definição concebida em termos científicos.