Nem tudo o que é lícito é honesto…
Reparo como a pequena política se encarquilha no “fait divers”, perdendo-se em muitas pequenas cascas de árvore que nos ocultam a floresta da grande política. Daí que todos comentem a cena de Sócrates e Pinho, apanhados com cigarrito, no voo que os levava em visita oficial à Venezuela, onde Chávez invocou a protecção da Virgem de Fátima. Coisa de somenos, porque tudo pode ter sido inteiramente lícito e petroliferamente correcto, com resmas e resmas de Razão de Estado, dado que o príncipe nem sequer precisou de usar o absolutista princípio do “princeps a legibus solutus”.
Apenas se confirmou o bem pregas Frei Tomás da falta de autenticidade de certos políticos profissionais, coisa que apenas se situa no plano moral. Porque não leram Cícero, o tal que bem nos avisou: nem tudo o que é lícito é honesto…
Reparo na intervenção presidencial sobre a matéria, dizendo que, no tempo dele, nos aviões fretados para viagens do primeiro-ministro, ele nunca fumava, embora não pudesse saber o que se passava por trás das cortinas, quando ainda não havia a lei proibicionista que nem sequer o Presidente tem poderes para a mudar…
Emociona-me a resposta Sócrates, pedindo desculpa por desconhecer as normas que ele próprio propôs, mas prometendo que, a partir de agora, vai mesmo deixar de fumar. Infelizmente, quando quis defender-se, revelou um velho fantasma, ao denunciar como “calvinistas”, os denunciantes da liberdade de fumaça. Podia ter usado outros nomes diabólicos, como os de “fascista”, de “puritano”, de “inquisitorial”, ou de “fundamentalista”. Mas preferiu confessar, à boa maneira socialista, que está contra a ética protestante, fundadora do capitalismo, deste ar que todos respiramos na globalização, cometendo um pequeno deslize anticonstitucional, quando ofendeu as concepções do mundo e da vida nascidas na pátria de Jean Jacques Rousseau.
Vale-nos que a ministra que nos trata da saúde já arranjou meios para nos operarem às cataratas, sem recurso a Cuba, apenas com a mobilização dos meios do sector público da saúde, depois de ter criticado um acordo da ADSE com um hospital privado. Por outras palavras, certos preconceitos de esquerda que marcam os nossos socialistas acabam por dizer que as coisas só são públicas se o patrão for o Estado, não reparando que o título pode não corresponder ao conteúdo.
Não há meio de perceberem que não é o hábito que faz o monge, tal como não é o órgão que gera a função, quando o que interessa é ter o órgão ao serviço da função. Logo, não devemos continuara a julgar que só é público o que mede verticalmente, de cima para baixo, conforme a tradição absolutista do centralismo e do concentracionarismo.
Porque, se viajarmos pelo fundamento da velha república romana, notaremos que o máximo da coisa pública estava na horizontalidade dos pactos, nomeadamente quanto à qualificação de uma lei, que só era verdadeiramente pública quando os magistrados a propunham num comício do povo. Com efeito, só é efectivamente público o que reside na horizontalidade dos consensos pactistas. Porque a comunidade é superior ao principado, dado que a república vale mais do que o aparelho de poder e a nação é superior ao Estado.
Por outras palavras, não devemos trazer para a praça pública aquilo que, para ser eficaz, não deve sair do espaço da intimidade familiar e, muito menos, passar para o largo do pelourinho. Como jurista que continuo a ser, embora dessa ciência não faça modo de vida, até diria que a melhor sociedade é aquela onde todas as regras são espontaneamente cumpridas, nomeadamente aquela onde as tais questões de consciência não precisam do “casse tête” da guarda, dos manuais e códigos de processo penal e das grades prisionais…