Confesso que tenho assistido, entre o sofá e a secretária, mas com todo o cuidado auditivo, à série do Salazar garanhão, a perder a fé, dado a bruxarias e à variedade dos concubinatos, típicas das recaídas pagãs, como se pagus não fosse aldeia, etimologicamente falando, e não fossem tradição as teúdas e manteúdas dos grande chefes dos vícios privados, virtudes públicas. Também verifiquei, um pouco antes, na mesma SIC, como Mário Crespo, ao vivo e em directo, não conseguiu driblar a Maria José Morgado, vestida com o heterónimo de Pinto Monteiro, a qual lá escapou das candidices e foi sempre magistralmente correcta, sem necessidade de usar o chinelo, como às vezes faz contra Pinto da Costa. E logo imaginei que a próxima entrevista do programa seria a de Crespo com Câncio, depois da bela polémica escrita que os dois estabeleceram, com Sócrates em pano de fundo e o ministro Silva Pereira reduzido a um registo de pressões frustradas pelo telefonema prévio, que não foi ilícito, que não foi imoral, mas que revela a pouca vontade de combate nos domínios do imprevisível.
Claro que não pensei mais em Marcelo e em Ferreira Leite, depois de prestar um depoimento ao gratuito “Meia Hora” e que, hoje, faz parangona de primeira página, quando subliminarmente declarei que Cristo prepara a sua descida à terra, porque é, talvez, a última oportunidade de o professor, das domingueiras missas laicas, ser primeiro-ministro de Portugal. Claro que também não alinhei no propagandismo de Santos Silva contra a bisneta de José Dias Ferreira, a quem assinalei a tenacidade de cumprimento da abstracção programática, independentemente desta alteração anormal das circunstâncias, embora tenha observado que ela ficou enredada neste ambiente de confronto das grandes potências no sistema, dado que se assume como mera potência secundária de Cavaco. Esta parte das declarações não foi seleccionada, coisa correcta de critério editorial, face ao tom da peça publicada. Embora esteja escaldado porque ainda há semanas um grande jornal me pediu um comentário sobre uma intervenção da líder do PSD e que, então, saiu objectivamente elogioso, mas que foi apagado e nunca saiu, porque a onda dominante era, então, a de malhar na senhora, mesmo sem telefonemas de ministros ou da máquina de campanha cor de rosa.
Prefiro reflectir sobre o ambiente retrospectivo da série de Salazar, procurando esconjurar os fantasmas salazarentos. Porque o travo que nos fica, depois de assistirmos a essa nova versão da Emmanuele de Santa Comba, quase ameaça a democracia, ao mostrar-nos um estadista que alcançou o cognome que também marcou Robespierre, o de incorruptível, mas, tal como o seu irmão-inimigo jacobino, também dado ao terror. Mesmo com os vícios de seminarista e de namorado frustrados, o essencial da mensagem tem a ver com o pecado natural de um humano, demasiado humano.
São perigosas estas viagens pelas intimidades da tal história que, conforme dizia um ministro de Salazar, Armindo Monteiro, depois de saneado, é o género literário mais próximo da ficção. São, sobretudo, perigosas neste momento em que o regime democrático ameaça degenerescência, até porque nos faltam menos de dez anos para completarmos, neste regime, o tempo que durou a governação de Salazar. Um autoritarismo que, apesar de ter no cume um incorruptível, também viveu rodeado de corrupção, promovida pelos mesmos agentes que, agora, estão apodrecendo este nosso péssimo regime, mas, com toda a certeza, o menos péssimo de todos os que tivemos desde o terramoto pombalista, quando o despotismo ministerial destruiu o consensualismo da lusitana antiga liberdade.
Por mim, ainda estou disposto a lutar pelos tradicionais princípios e valores demoliberais, mas acredito que, sem a restauração da república, contra aquilo que Salazar clamava como a fina flor da plutocracia, corremos o risco de continuarmos sujeitos ao arbitrário do domínio perpétuo do acaso e do governo dos espertos. Espero que os nossos responsáveis partidocráticos entendam estes sinais do tempo, auscultando como a opinião pública observa esta viagem pela memória salazarenta. E a melhor maneira de denunciarmos esta pesada herança é a de sublinharmos que o Estado Novo, com o seu condicionamento industrial, criou uma estufa de proteccionismo para as forças vivas da inércia, assentes numa economia privada que nunca foi pluralista e competiva, isto é, economia de mercado, sem fidalgotes a queimarem e a exilarem os judeus e cristãos novos.
Salazar foi o pior dos adversários do espírito liberal e não apenas pela intolerância e a persiganga policiescas do autoritarismo. Mantendo o despotismo ministerial do pombalismo e algum caceteirismo da viradeira, foi um efectivo primeiro-ministro de um imaginado rei absoluto, entre a esquizofrenia de João Franco, que matou a democracia, e o neofradesco inquisitorial. Caso não esconjuremos este avô tirano, nunca repararemos como é impossível, pela natureza das coisas, um qualquer salazarismo democrático, porque um regime misto, como deve ser a democracia pluralista do Estado de Direito, nunca pode fazer desabrochar as sementes da ditadura, incluindo a tecnocrática ditadura das finanças. Mesmo o apelo ao anticapitalismo, que vai da Convenção do Casal Vistoso aos discursos pretensamente progressistas da moção de Sócrates, quando já não há soberanismo, são meras drogas ideológicas que não nos curam de uma doença que precisa urgentemente de um direito público universal, e não das ilusões albanesas. Porque alguns acreditam na hidra denunciada por Santos Silva sobre o assassinato moral de Sócrates, é natural que se restaure moralmente Salazar, num esquema directamente proporcional à nebulosa dos preconceitos de esquerda e dos fantasmas de direita que nos enredam.