No dia em que a República de 1910 faz anos, costuma apagar as velas uma figura institucional que chegou sete anos depois, com Sidónio (1918) e, depois, em ditadura (1928), o presidente eleito por sufrágio universal e directo, e fá-lo, paradoxalmente, não na casa da democracia, o parlamento, mas por trás da janela onde se proclamou a vitória de um golpe de Estado, promovido pelo braço armado de um partido. Daí, o paradoxo. A instituição presidencial da Constituição de 1976 diverge das figuras presidenciais da revisão sidonista da Constituição de 1911 e dos enxertos ditatoriais e plebiscitários que a ditadura lhe introduziu com Carmona, Craveiro Lopes e Américo Tomás. Mas só conseguimos fazer elevar um civil a esse sucedâneo de monarca, pela via do sufrágio, quando os partidocratas ocuparam o cargo, através de Soares, Sampaio e Cavaco. No fundo, o nosso presidente constitucional tem mais a ver com a nostalgia de 1958, quando, dentro das regras do jogo do salazarismo, Humberto Delgado, através do voto popular, quase consumou um golpe de Estado constitucional, o tal golpe de Estado sem efusão de sangue, pela via eleitoral, que nos poderia ter livrado da ditadura. Por isso é que os esbirros da mesma o assassinaram em 1965. E por isso é que este regime tem tido superioridade moral. Apesar de tudo, o PR ainda é a instituição mais prestigiada aos olhos do povão. Tem mais autoridade que poder, e, como mestre de cerimónias, assume os seus cumes de representatividade pelos discursos que emite no 5 de Outubro, no 25 de Abril, no 10 de Junho e nas mensagens de Ano Novo, quase sempre em ritmo de um cabalismo politicamente correcto, onde qualquer palavra fora do contexto é objecto de hermenêutica quase bíblica, através da corte dos comentadores, de que também faço parte. Sendo impossível restaurar a república, pela via do golpe de Estado, como em 5 de Outubro, onde sempre houve a esperança de um acto de violência genesíaco significar as dores de parto de uma revolução, com o consequente homem novo, temos de concluir que os exercícios teológicos de interpretação do texto presidencial nos discursos rituais do costume são, cada vez mais, uma espécie de discussão do sexo dos anjos, isto é, de aulas de pós-graduação sobre a conjuntura financeira internacional. Por isso é que espero que um dia, haja um presidente que tenha a coragem de homenagear os heróis do 5 de Outubro, mesmo que sejam irmãos-inimigos. Era um belo gesto presidencial saudar o carbonário Machado Santos e o monárquico Paiva Couceiro, dois dos portugueses daquela fibra multissecular que manifestaram a vontade de sermos independentes, contra a sociologia cobarde que já então nos amargurava, porque tínhamos a nossa soberania condicionada por um acordo internacional de credores. Logo, vou hoje cantar “A Portuguesa”, mais uma vez. Sempre. Valete, Valete, Valete!
Daily Archives: 5 de Outubro de 2011
Farpas
No “agenda setting” deste fim-de-semana, de pós-papândrio, com Seguro calado, e Relvas dando a deixa, tudo aponta para alguma troca de mimos consensuais na orçamentocracia. Espera-se, a qualquer momento, nova conferência de imprensa conjunta, entre PS e PSD, com Portas a não ficar ciumento. Torço pela instauração deste bom-senso. Não gosto do quanto pior, melhor!
A grande originalidade dos portugueses actuais face à maioria dos colegas da UE é que não temos heroicidade na memória do sofrimento, pelo que não há condições para adequada libertação. Não resistimos aos soviéticos nem as nazis, não tivemos guerras civis e a última memória viva como povo em sofrimento, ou é minoritária, a dos antifascistas, ou foi passada em territórios de além-mar, caso dos soldados. O que temos de prosperidade não foi conquistado existencialmente, veio do voto útil. Reaprender a conquistar a vida vai ser doloroso para uma maioria sociológica, treinada para a cobardia.
A maioria do povo sufragou democraticamente este retrato. Na galeria do jornal que emitiu a coisa, vinha outro ainda mais preocupante, a de um grupo parlamentar de outrora, em aplauso pífio aos milhões da CEE. Apenas apetece repetir como quando o Vasco era Santana: “chapéus há muitos, seu palerma”. Entretanto, ficámos todos carecas. E sem xeque, ao rei.
Não é por eu criticar o rei que deixo de ser realista. Não é por eu criticar a democracia que passo a inimigo da democracia. Não é por eu criticar o orçamento que passo a antinação e anti-europeísta. Apenas quero ser, muito liberalmente, homem livre numa pátria livre.
Merkel diz hoje, nas suas mensagens internéticas, que o imbróglio vai levar, pelo menos, uma década a desfazer. Por outras palavras, nem eu estarei por cá para ver chegar esses amanhãs que cantam, nem ela será o símbolo da aurora redentora. Como ela não tem química para profeta, seria mais cauto admitir a possibilidade de um curto-circuito na maquineta. Espero que não seja o regresso à guerra ou ao totalitarismo.
Discurso na Assembleia Municipal de Lisboa
O Senhor Professor Universitário José Adelino Maltez
Senhora Presidente da Assembleia
Senhor Presidente de Lisboa, era assim que nós precisávamos de ter o nome,
Caros vizinhos 36
Vizinhos é uma velha palavra eu apreendi quando vivia nos Olivais, e que me foi ensinada por aqueles putos que tinham sido expulsos da zona da construção da ponte e que extinguiram praticamente a vitalidade do Atlético. Mas tratavam-me assim, e eu percebi que havia uma palavra lisboeta que queria dizer solidariedade, proximidade, participação.
Depois deste dia magnífico, eu acho que se pode aplicar perfeitamente o que noutras circunstâncias disse o lisboeta Almada: “As frases que hão-se salvar Lisboa já estão todas escritas”. Há aqui uma coisa que falta, e que não temos capacidade, que é força política para poder aplicar o conjunto de carências que em comum detectamos.
E eu, confesso, sou um vencido da vida, um militante de causas perdidas, e permitam-me fazer a comparação maldosa com a regionalização, com a reforma da Lei Eleitoral, processos precedidos por longos estudos, mas que no momento exacto da mudança não tiveram – não é falta de vontade política – adesão comunitária. Não houve, da parte das comunidades, suficiente impulso para dar apoio a políticas e estudos que vislumbravam uma alternativa.
Eu tinha um discurso, mas já não o vou ler. Prefiro, talvez, fazer dois ou três tópicos fundamentais. Um deles, pode parecer estranho, a coisa mais próxima da descrição de Lisboa que eu conheço é o Tratado de Aristóteles sobre a política, sobre a origem da Polis, quando ele conta como é que nasceu a Polis. A certa altura várias casas juntaram-se e formaram uma aldeia, estavam numa colina, uma aldeia juntou-se a outra aldeia, foram-se federando – estou a ver as sete colinas – mas o Aristóteles explicava que elas só puderam ser federadas pela existência de uma colina muito especial, a colina da alma, a Acrópole.
Porque nessa colina, vamos chamar-lhe o castelo, havia duas coisas que não existiam em todas as outras, e às vezes parece que nos esquecemos disso. Havia o tempo e havia o palácio da câmara, não é o castelo do chefe, é o sítio onde o povo se reunia. Sem essa alma de uma colina maior que federe, e sem conjugarmos o verbo federar, vamos pedir a uns tecnocratas e a um ministro pombalista que aplique, em regime de pronto-a-vestir e de iluminação, uma determinada via. Isto tem falhado em Portugal.
Eu recordo que se a nossa geração, estes “abrileiros” de 30 anos, de alguma coisa nos podemos orgulhar, é com duas reformazinhas práticas que não estavam no programa do MFA, mas que nós fizemos: as autarquias e as regiões autónomas. Não estava suficientemente destacado. Foi a vontade espontânea das energias comunitárias que impuseram uma alteração estrutural nalgumas tradições centralistas que nós transportamos sem reparar.
Lisboa o que era? Também estive para trazer para aqui um texto que eu achei que não ia acrescentar nada, do Alexandre Herculano, quando lançou aquele programa “O País deve ser administrado pelo País”. E o Herculano tinha alguma razão de ser invocado, porque às vezes até desconhecemos que foi ele Presidente da Câmara, não de Lisboa mas de Belém/Ajuda. Portanto, havia esta possibilidade de fazermos experimentações, para efeitos do desenvolvimento do pólo industrial de Belém/Ajuda. E nós temos uma tendência para nos fecharmos. 37
O que é Lisboa? Lisboa, de que eu sou cidadão, pelo menos nasceram-me cá três filhos, não foi aqui que nasci mas já tenho o direito a ser cidadão de Lisboa, como dizia Augusto de Castro, foi a melhor definição que até hoje encontrei de Lisboa, o velho jornalista Augusto de Castro, “Lisboa é uma Cidade feita por subscrição nacional”. E esta definição da alma de Lisboa, que é as colinas federadas pela Acrópole, gostava que fossem pela Câmara, mas com uma abertura como não há em mais nenhuma cidade, tem um inimigo. Ao contrário do que parece, o maior inimigo de Lisboa são os capitaleiros, é o Estadão. Lisboa não tem voz porque se confunde ser cabeça do império, não tem voz porque não lhe permitem restaurar de uma forma, digo eu à Herculano, radical: as liberdades locais e as proibidas liberdades regionais. Mas só o conseguiremos fazer se retomarmos o verbo federar.
E aqui é ler o que os sonhos do Herculano, do Henriques Nogueira, de um Teófilo e até de um António Sardinha, que leu estes todos e até teve a definição de freguesia, a “Comuna sem Carta”, e em Lisboa há muitas comunas sem carta que se tivermos humildade, se percebermos que este projecto, que aqui pode ter um consenso, vai falhar porque talvez não estejamos a assumir – isto já foi dito aqui – que o grande segredo de reformarmos administrativamente Lisboa, é reformá-la politicamente.
Neste momento, Lisboa padece de um vício, desculpem a expressão, vou ser muito rápido. A Câmara de Lisboa é grande demais para as participações infra-municipais, não há cidadania, tomara eu poder viver em Lisboa como um vizinho vive em Nova Iorque, ninguém fecha a rua sem os vizinhos se reunirem, como neste momento um vizinho vive em Paris, não se altera uma obra sem chamar o vizinho para a reunião.
Este modelo, por mais que as pessoas sejam boas administradoras não funciona, nós temos que dividir Lisboa em coisas mais eficazes que a freguesia, se calhar temos que dividir a Câmara em várias Câmaras, à maneira de Belém/Ajuda ou à maneira do velho concelho dos Olivais, numa forma pré-liberal que era o Senado Municipal de Lisboa que tinha vários municípios. Se calhar temos que dividir a Câmara em várias Câmaras, mas desde que a Câmara a que chegamos, com outras Câmaras vizinhas, atinja o nível de um governo regional.
Eu acho inadmissível não termos suficiente força, nós que somos mais que os Açores e que a Madeira, para termos uma voz política equivalente à dos governos regionais, que eu não critico, é uma boa conquista e é uma forma de os povos poderem falar. Sem este dividir para unificar, sem a consciência de percebermos que Lisboa é ao mesmo tempo grande de mais para os pequenos problemas da vizinhança e da participação, e pequena de mais para uma voz nacional que é preciso ter, nós não conseguimos mudar. Para isso, o maior inimigo chama-se Direito Administrativo e Códigos Administrativos.
Quer dizer, nós ainda estamos ensarilhados entre o Costa Cabral e o Código do Marcelo Caetano que ainda está em vigor nalguns segmentos. E na mentalidade de Direito Administrativo, qualquer tipo que fuja da mentalidade de Direito Administrativo diria o Direito Administrativo é uma invenção do absolutismo, e tratar do Estadão com matérias do Direito Administrativo, só se for para aumentar as avenças dos professores do Direito Administrativo. 38
Não é por aí, é recuperando um verbo mais antigo e mais libertador que sempre houve em Portugal, é retomando o espírito de resistência que fez Portugal “A dos Ventres ao Sol no Cerco de Lisboa”, é retomando, talvez, um conceito vizinho.
E agora permitam-me um certo lirismo: o primeiro tratado de política escrito em português, e que, infelizmente, não tem feito curso nos manuais escolares, de um tal Infante D. Pedro, o “Tratado da Virtuosa Benfeitoria”, que só o conhecemos por causa da República, foi a Biblioteca Pública do Porto que o editou, “A Semente do Sampaio Bruno”, que não era bem visto por alguns, por acaso não foi recentemente homenageado nestas comemorações o Sampaio Bruno, o Infante D. Pedro tem lá uma história muito parecida com esta de Aristóteles.
Quando ele tentou definir a República, já usava o termo e era bonito, e definia-a como a comunidade do príncipe e da sua terra, tem lá uma expressão que é a mais profunda que eu encontrei até hoje para definir a República: “É um concelho em ponto grande”. A República é vista como um concelho em ponto grande, como uma federação de aldeias em torno da Acrópole, e nós temos que perceber que não há Lisboa sem alma, não estou a dizer que é a Sé de Lisboa, é a Nação, é a Pátria que é a região secular nova, e é a agregação dos vizinhos no regime de assembleia.
Sem esta visão da República como um concelho em ponto grande, nós não conseguiremos reformar Lisboa. Sem sermos vizinhos, sem percebermos até, permitam-me agora uma ousadia um bocado lírica, que Lisboa é uma comunidade de subscrição aldeã. Um bom lisboeta o que é? Um bom lisboeta é um dúplice, é um tipo que tanto é do Bairro de Alfama como ao fim-de-semana quer a sua santa terrinha, tem saudades da Beira, e até chama ao rio, como diria o Pessoa, o rio que passa na minha aldeia, que é o Tejo, e até gosta de hortas. Quer dizer, o segredo de Lisboa é a Cidade feita por subscrição nacional, está aqui o meu Mestre, e para tantos de nós, o Gonçalo, que nos ensinou perfeitamente que há aqui também uma subscrição aldeã. Há uma alma nestas reformas todas, e isto não funcionará se não houver alma.
Segundo, isto não funcionará se não houver atitude de conspiração política. Se o Presidente de Lisboa não federar as cabeças do primeiro banco em Cortes, como no tempo do Febo Moniz, quer dizer as Cortes não reuniam mas havia ali as cidades do primeiro banco, e julgo que estamos a fazer isso, se não houver uma conspiração de Câmaras Municipais que estão, pela primeira vez na história, potencialmente unidas na destruição do Código Administrativo de Marcelo Caetano e de Costa Cabral, na liquidação do Estadão do Marquês, do Fontes Pereira de Melo, do Afonso Costa e do Salazar. Se nós não aproveitarmos aquilo que construímos nestes últimos 30 anos, que foi uma revolução autárquica, uma revolução regional, isto não estava nos programas, às vezes as coisas importantes, não é a história que faz os homens, são os homens que fazem a história, mas sem saberem que história vão fazendo.
Nós, trinta anos depois, talvez seja conveniente reparar que fizemos história, a nossa geração fez história e chegou a altura de perceber que história foi fazendo. Não estava nos programas, o melhor nunca está nos programas, o melhor está na acção dos homens e não nos pré-conceitos programáticos que os homens fazem. 39
Nós temos esta boa herança, e esta boa herança, respeitando as coisas, oh Prof. Mateus eu quase lhe dava uma sugestão, quer dizer essas nove coisas que inventa, se não estragarem as freguesias históricas e se passarem a lojas municipais de cidadãos, quer dizer a máquina das certidões para que a gente vai à Junta, isto pode ser uma loja municipal do cidadão e podemos eliminar todos ao gastos administrativos e dar mais participação às pessoas, mantendo as freguesias históricas para aquilo que elas nasceram: política. Amor comunitário, federação, participação simbólica na Assembleia Municipal.
Eu chamo só a atenção, e com isto acabo, glorioso Passos Manuel, uma das figuras que mais me inspira, quando fez as tais reformas liberais cometeu um erro fatal. Ainda hoje eu guardo a bandeira do meu município extinto. O Herculano reagiu contra isso, estava do outro lado, quer dizer nós não podemos fazer reformas abstractas, isso é a continuação do pombalismo. Não é preciso mexer nas autonomias como castelo para criar nove lojas administrativas municipais com muito mais eficácia.
Isso é um problema de sapiência e é um problema de distinguir os objectivos: uma coisa é política, outra coisa são gastos, taxas, funcionários. Coitados dos Presidentes de Junta têm que aturar as certidões por causa das uniões de facto. “Quantas testemunhas trás V. Exa.?” Quer dizer, isso não é uma freguesia histórica, não é isso. E talvez inventar mais municípios em Lisboa! Isso sim, mas devagarinho. Hoje qualquer mega-cidade da nossa dimensão por toda a Europa não está no tempo em que se traduziu o Código Administrativo do Costa Cabral nem do Marcelo Caetano, está um bocadinho mais evoluída em participação.
Lisboa espera uma bela reforma disto, e acho que todos, a partir do que aqui foi lançado, podemos criar um forte grupo de pressão nacional, para não admitir a manutenção do elemento estático, isto é dos Códigos Administrativos. Já estamos fartos de Códigos Administrativos.
Muito obrigado.