Jan 04

Do regresso da guerra e da fome, ao santuário das baleias, em nome do sonho que falta

Noto que ano novo, mas vida velha, porque voltam os velhos cavaleiros do Apocalipse. Não por causa da crise de gripe, mas pela Guerra e pela Fome, mesmo que, por agora, se chame pobreza, sem abrigo e desemprego. Primeiro, a guerra, uma guerra que os judeus dizem total, um pouco à maneira do fantasma hitleriano, que pensava a total como mais curta. Uma guerra dos diabos identitários numa terra triplamente santa para judeus, cristãos e muçulmanos, onde o argumento mobilizador tanto é um bom árabe ser um árabe morto, como vice-versa. Curiosamente, as bombas vão destruindo grande parte da ajuda europeia à Palestina, saída dos nossos bolsos, do mesmo bolo que pretende servir para a sustentação do chamado Estado de Bem Estar. O mal-estar do dito cujo, aqui e agora, são dois milhões de pobres, como revela Isabel Jonet. Os mesmos de há quinze anos, apesar de tantos governos de esquerda, socialistas, sociais-democratas e democratas-cristãos. Com efeito, a Europa de Delors, que este definia como dois terços de remediados da classe média com um terço de excluídos, com desemprego, subsídio de desemprego, reformas, aposentações e caridadezinha contra a exclusão, aqui, em Portugal, caminha para a sul-americanização, numa espécie de jangada de pedra ao contrário. Daí o crescendo do indiferentismo e da não-cidadania, face a ricos que são cada vez menos, mas cada vez mais ricos, pedindo nacionalização dos prejuízos, enquanto nos vamos divertindo como circo da futebol-ítica e o pão ainda não sobe de preço. O sistema é uma grande panela de água a ferver, cujas válvulas de escape parecem ficar entupidas pelo lixo do indiferentismo e da corrupção. O sistema tende a asfixiar o regime e o povo pode colocar-se contra a partidocracia que, para si mesma, reclama o monopólio da democracia. Aliás, os comentadores instalados, apesar de anti-socráticos, apenas servem a águia bicéfala do situacionismo, a que chamamos coabitação de maiorias e falta de cooperação estratégica. Contudo, nenhuma das cabeças de tal águia denuncia a usurpação das forças vivas e da casta banco-burocrática, onde não é importante ser ministro ou partidocrata, mas tê-lo sido. Poucos reparam que, apesar de não haver descamisados, com o perigo real do chamado populismo, pode ser que os jovens desempregados e os velhos sem abrigo continuem a promover uma silenciosa conspiração de avós e netos. Não parece que o apelo ao instinto do estatismo centralista, hoje contra as regiões autónomas, amanhã contra as restantes autarquias, seja mobilizador. Apenas disfarça o essencial e revela como os supremos mandadores são herdeiros do Marquês de Pombal, de Afonso Costa e de Salazar . Espero que não seja pecado alguém poder ser regionalista e federalista a nível interno, assumindo-se frontalmente contra o capitaleirismo, a pior das chantagens que estão a fazer contra a democracia. Deixei uma última palavra de esperança para o futuro, em nome da mãe-terra, dessa mátria que descobriu em Timor um santuário de baleias e golfinhos. Infelizmente, em Portugal, terra de enjoados, dominada por um défice de sonhadores activos, poucos compreendem que só haverá boa política quando voltar o sonho, a criatividade e a imaginação.

Out 19

a Murganheira jorrou pelas gargantas

Hoje, pela madrugada, a Murganheira jorrou pelas gargantas, celebrando o acordo. Mais uma vez, na Europa, ganhou o sim pelo não. O Tratado de Lisboa, que vai além de Maastricht e Nice, quase se aproxima dos Tratados de Paris e de Roma. Se tem o “champagne” da convenção valéria, isso é por homenagem ao maçon Jean Monnet, que era produtor da bebida. E os deuses todos ajudaram. O cenário do Parque das Nações e do Pavilhão Atlântico, com São Pedro e São Martinho a ajudarem, foi perfeito. Portugal ganhou, aqui, à beira Tejo, de olhos postos na partida Atlântico fora. Como Sócrates sintetizou nos “apanhados” da conferência de imprensa, dirigindo-se a Barroso, no abraço final, “porreiro, pá!”. É natural que o nosso primeiro se sinta “um político realizado…” No plano doméstico, é que a realização se vai engasgando. Porque também ganharam Carvalho da Silva, Jerónimo de Sousa e os duzentos mil que se manifestaram na rua, em nome da pluralidade política e social. Estive com os manifestantes e com os artistas da representação instritucional cimeira, deste novo Congresso de Viena, com a sua hierarquia das potências, onde Portugal, gerindo dependências e interdependências, deu provas de estar vivo, como grande potência espiritual, onde, nalguns segmentos, até estamos nos dois primeiros lugares das hierarquias fundacionais. Bem recordo do último trabalho universitário em que cooperei com Barroso e da disciplina que ele sempre insistiu em reger: teoria da decisão em política externa. Agora levou à prática aquilo que sempre ensinou. E, na prática, a teoria não foi outra. Noto a faceta planeamentista de Sócrates e a respectiva teimosia. Quando aplicada em objectivos diversos do semear de micro-autoritarismos subestatais, ela pode ser útil ao país. Aos dois, obrigado! Mas discordo frontalmente da manobra com que alguns pretendem evitar os referendos. Mesmo que concorde com a retórica de Vitorino sobre a não constitucionalidade do tratado reformador, julgo que há promessas que se devem cumprir, por razões substanciais, sem desculpas silogísticas. O povo não pode apenas ir à manifestação da CGTP, tem de ir à urna e que ser mobilizado pela maioria das nossas pluralidades. Por mim, que, na hipótese do outro referendo, logo participei na campanha do “não”, estou, hoje, disponível para ir para o “sim”. Vamos a ele. É a hipótese que temos de dar democracia ao Tratado de Lisboa.

Out 18

Europa. Tratado de Lisboa.

Hoje, pela madrugada, a Murganheira jorrou pelas gargantas, celebrando o acordo. Mais uma vez, na Europa, ganhou o sim pelo não. O Tratado de Lisboa, que vai além de Maastricht e Nice, quase se aproxima dos Tratados de Paris e de Roma. Se tem o “champagne” da convenção valéria, isso é por homenagem ao maçon Jean Monnet, que era produtor da bebida. E os deuses todos ajudaram. O cenário do Parque das Nações e do Pavilhão Atlântico, com São Pedro e São Martinho a ajudarem, foi perfeito. Portugal ganhou, aqui, à beira Tejo, de olhos postos na partida Atlântico fora. Como Sócrates sintetizou nos “apanhados” da conferência de imprensa, dirigindo-se a Barroso, no abraço final, “porreiro, pá!”. É natural que o nosso primeiro se sinta “um político realizado…” No plano doméstico, é que a realização se vai engasgando. Porque também ganharam Carvalho da Silva, Jerónimo de Sousa e os duzentos mil que se manifestaram na rua, em nome da pluralidade política e social. Estive com os manifestantes e com os artistas da representação institucional cimeira, deste novo Congresso de Viena, com a sua hierarquia das potências, onde Portugal, gerindo dependências e interdependências, deu provas de estar vivo, como grande potência espiritual, onde, nalguns segmentos, até estamos nos dois primeiros lugares das hierarquias fundacionais. Bem recordo do último trabalho universitário em que cooperei com Barroso e da disciplina que ele sempre insistiu em reger: teoria da decisão em política externa. Agora levou à prática aquilo que sempre ensinou. E, na prática, a teoria não foi outra. Noto a faceta planeamentista de Sócrates e a respectiva teimosia. Quando aplicada em objectivos diversos do semear de micro-autoritarismos subestatais, ela pode ser útil ao país. Aos dois, obrigado! Mas discordo frontalmente da manobra com que alguns pretendem evitar os referendos. Mesmo que concorde com a retórica de Vitorino sobre a não constitucionalidade do tratado reformador, julgo que há promessas que se devem cumprir, por razões substanciais, sem desculpas silogísticas. O povo não pode apenas ir à manifestação da CGTP, tem de ir à urna e que ser mobilizado pela maioria das nossas pluralidades. Por mim, que, na hipótese do outro referendo, logo participei na campanha do “não”, estou, hoje, disponível para ir para o “sim”. Vamos a ele. É a hipótese que temos de dar democracia ao Tratado de Lisboa.

Out 18

Europa da Sã Cimeira

Hoje é dia um de Sã Cimeira, com trânsito condicionado, carros de reportagem, discursos, barganhas, apertos de mão, fotografias de grupo e o antecipado verão de São Martinho. Que a Senhora de Fátima e todos os outros deuses os ajudem e nos ajudem, porque, se calhar, só daqui a treze anos e picos é que poderemos voltar a ser presidentes desta união que ainda não chegou a acordo comercial com a Rússia de Putine. Na véspera, em dia de Makukula cazaquistanense, o lusitano governo, propagandeando-se, em nome da Europa, disse que, dela, vamos receber milhões e milhões por dia, mas que, desta, é que os vamos gastar como deve ser, assim confirmando oficialmente que, antes, eles, os subsídios, foram efectivamente uma oportunidade perdida, dado que os gastámos por gastar, para não termos de os devolver. Entretanto, anuncia-se o resultado destas três décadas de governação de preconceitos de esquerda e de fantasmas de direita: somos o país da Europa com mais disparidades sociais, com cerca de dois milhões de pobres, velhos e novos, assim se demonstrando que de boas intenções socialistas e sociais-democratas está o nosso inferno cheio. Os ricos são cada vez menos e cada vez mais ricos. Os pobres, cada vez mais e cada vez mais pobres. Para que os ricaços discursem arrogantemente. Para que os pobres caiam no engodo de pensar que se acaba com a pobreza, acabando com os ricos. Vale-nos que chega mais um orçamento, dizendo que desta é que vai ser. Ao mesmo tempo, um conhecido e afamado banqueiro declara que não cometeu nenhuma irregularidade jurídica, quando o banco que controla emprestou dinheiro ao respectivo filho, para, depois, não lhe cobrar a dívida. Como se o problema fosse apenas dessa artificialidade chamada direito, onde não há relações de vida, mas apenas relações jurídicas. Mesmo banqueiros anarquistas e cristãos têm que assumir as regras da ética protestante do capitalismo. Por outras palavras, devem assumir outro padrão, tanto no tocante ao exame de consciência, como relativamente ao exemplo social que representam. Porque não basta o presidente do respectivo sindicato desculpá-lo com a teoria da conspiração. Um cristão diria que ele deveria amar ao próximo como a si mesmo e não fazer aos outros o que não queria que lhe fizessem a ele, nomeadamente quanto à cobrança de juros. Um confuciano repetiria tal regra das religiões universais. Até um Kantiano acrescentaria que, da respectiva conduta, se deveria extrair uma norma universal. Só o sapateiro de Braga concluiria que não havendo moralidade, todos devem comer. O homem não é naturalmente mau e não actua apenas movido pela necessidade. Qualquer retiro espiritual aconselhará esse paradigma a arrepender-se e a dar bons exemplos. De outra maneira, o Zé Povinho continuará a fazer seu gesto feio de homem revoltado.

Mai 23

Europa, viva o sim pelo não! Obrigado, Charles de Gaulle…

Todos os povos da Europa entoaram na madrugada de ontem um enorme hino de alívio, porque os seus ilustres representantes cupulares, na cimeira de Bruxelas, conseguiram um desses acordos, onde todos concordaram no que estiveram, estão e estarão em desacordo. Até considero justos os elogios de bom aluno que já recebeu do professor-presidente. Contudo, não posso deixar de notar que, noutros traseiros do regime, acontecem paradoxos, como os morosos oito anos que levaram a uma acusação de corrupção sobre o tratamento de águas ambientais na Beira Interior, ou ao pingar diário de mais acusações sobre actuais e passados presidentes de clubes de futebol. Não vou gastar hoje meu latim neste normal de haver anormais, até porque nas duas viagens ferroviárias que fiz ao Norte li semanários políticos em demasia e fiquei enjoado com tantos solavancos deste pensamento dominante que vai lavando as cabecinhas das chamadas classes A e B, este portuguesmente correcto que usa e abusa dos nossos destinos.  Reparei apenas como em época de exames surgem coloridos anúncios universitários, públicos e privados, com muitas publicidade enganosa de agências especializadas em figurantes e figurões, prometendo futuros radiosos e chouriçadas do costume, assim contribuindo para o engrossar dos proletários intelectuais, gerados por este falso planeamentismo que está a transformar o que deviam ser universidades em hipermercados com muitas caixas registadoras de propinas. Apenas noto que estou farto dos falsos gestores que transformam venerandas instituições em manobras de péssimo “marketing”, onde se usa a técnica daquela terra queimada de qualquer invasor, para o beneficiário, depois, andar a pedir melhor emprego noutras paragens. Volto à Europa, recordando até que, na noite de sexta-feira, a debati com socialistas do Porto, onde voltei a ser nacionalista, federalista e liberal, sem qualquer choradinho sobre a resistência de um “Welfare State”, onde todos podem obter o cartão europeu de utente dos serviços públicos de saúde, fazendo bicha numa qualquer loja de cidadão. Porque, em pleno euro, sem ser por culpa do euro, a minha bolsa minguou e nem sequer me permite ir comprar caramelos a Badajoz.  Ainda bem que chegámos a acordo sobre o que estámos em desacordo, coisa que é bem melhor do que darmos música celestial a gongóricos textos que ninguém quer comunitariamente receber, quando não há suficientes símbolos que transformem a Europa numa comunidade de amor, numa ideia e num valor pelo quais valha a pena morrer como cidadãos. O erro dos comandantes do convencionalismo foi o de instrumentalizarem os belos símbolos da nossa “nation des nations” numa tecnocratice, especialmente quando começaram a dizer que a participação directa dos povos era menos legítima do que a decisão dos mesmos povos que indirectamente os canalizou como eurocratas. Esses que, no segredo das cimeiras e dos corredores das mesmas, negoceiam nossos destinos, em nome de falsas legitimidades que os levam a considerar-se como superiores à vontade geral de todos e cada um de nós, os homens comuns.  Ainda bem que, na recente cimeira europolaca, triunfou o método da cooperação política, essa herança gaullista do “oui par le non”, como tão bem a qualificou Maurice Duverger. Pelo menos, alguns europeístas como eu, sempre podem perder a carga demonizante de herético, com que eram qualificado pelos “yes, minister” dos bismarckianos, habsburgos e napoleónicos, atirando-nos para a nebulosa do anti-europeísmo ou do euro-cepticismo, categorias inventadas pela engenharia inquisitorial da burocracia e dos seus anexos de intelectuários, avençados ou subsidiados para colóquios sobre o futuro da Europa, com muitos censores de serviço, dependentes das gavetas de fundos dos patrocinadores.

Fev 24

Viradeira, assassinatos políticos, personalizações do poder e balança da Europa, com classe alta à mistura

Portugal sempre sofreu os balanços da balança da Europa e da balança do mundo, a não ser quando entendeu o mundo como armilar e tratou de ver mais alto, sem recorrer às lentes de contacto das pretensas classes altas dos estoris e das fozes do douro, com os distintos intelectuários que as mesmas vão mobilizando para a respectiva sociedade de Corte, onde já não há trono nem altar, mas tacho banco-burocrático, com alguns traseiros judiciais expostos em pouco sossego e esperança num convite para a próxima tomada de posse do futuro inquilino do palácio de Belém.  Como professor e, logo, membro do antigo clero não eclesiástico, reparo como as boas coisas desta sociedade de ordens, que eram as práticas do princípio da igualdade de oportunidades entre o clero universitário e eclesiástico e a nobreza funcional dos militares, acabam por ser subvertidas pelo regresso dos filhos de algo, dos herdados e dos prendados, neste declive decadentista que tende para a inevitável e horrorosa revolta do povo contra os ricos, naquilo que sempre foram as revoluções, quando estas não conseguem ser domadas por uma qualquer personalização do poder e a inevitável esperança numa constipação mal tratada ou na queda do ditador em qualquer cadeira. Se os estados gerais não funcionarem a bastilha é inevitável.

Fev 08

Europa dos Estados (1991)

Recordo hoje, conferência que proferi no Porto, em 1991, na Cooperativa Árvore, integrado no ciclo À Descoberta de Nós, promovido e presencialmente comandado por mestre Agostinho da Silva, a que dei o título de “A Europa dos Estados”. Neste começo da década de noventa, para uns, dito de fim da história e, para outros de regresso da política, talvez estejamos a assistir ao início de um efectivo após guerra, já não bipolarizado pelo equilíbrio mecânico das superpotências, estabelecido entre a pax americana e a pax sovietica, segundo os modelos de Yalta e a prática da guerra fria. Esta casa comum europeia, esta Europa das pátrias que vai do Atlântico aos Urales e que já foi res publica christiana, marcada por uma unidade em forma de elipse, que tinha num centro o Papa e, no outro, o Imperador, continua à procura da unidade perdida. Desde a Paz de Vestefália, de 1648, que vários Estados Impérios tentaram assumir a missão federadora desse processo, em nome dos mais variados signos ideológicos. Alguns actuaram isoladamente, como a tricolor França de Napoleão; outros tentaram a concertação de Santas Alianças, desde a de Alexandre Romanov à Santa Aliança Democrática da Paz de Versalhes. Quase todos falharam.A mais consolidada e esperançosa das experiências chama-se, agora, Comunidade Europeia. Começou por ser um simples acordo de paz franco-alemão, com os Tratados de Paris e de Roma, que instituíram a CECA e a CEE, respectivamente. Ousou ir mais além, com os alargamentos para as Ilhas Britânicas, o Mar Egeu e a Hispania, depois de encerrados os ciclos imperiais do white man’s burden.Mas quando essa mesma Europa estava, muito tecnocraticamente, à espera de 1992, eis que aconteceu aquele repto protagonizado por João Paulo II, a semear o Solidariedade, e com Gorbatchov a responder com a perestroika. E a pequena Europa das margens do Reno, assim alargada para além da Mancha e dos Pirinéus, com um poiso em Atenas, de olhos postos no Oriente, e em Copenhaga, às portas do Báltico, foi obrigada a repensar-se. A repensar-se em profundidade e em tempo de paz, sem ruínas nem ódios. A Europa, “la nation des nations”, como a qualificava Montesquieu, talvez seja mais do que a restrita Europa do internacionalismo liberal dos anos vinte, conforme o modelo de unidade política proposto por Aristide Briand, perante a Sociedade das Nações, em 5 de Novembro de 1929. A Europa em corpo inteiro é, de certeza, mais do que o mercado comum sonhado por Jean Monnet em plena era dos managers. A nossa Europa neste Ocidente dos Estados é um sonho partilhado por quase todas as correntes da civilização greco-latina e germânica.Reclamou-a a Maçonaria de Mazzini em 1834, aquela corrente que queria impor à Europa uma unidade absoluta, fundar uma teocracia republicana, um papado republicano, como antes Carlos V e Filipe II sonhavam uma monarquia universal. Defendeu-a o internacionalismo comunista de Trotski, quando propunha, também no final dos anos vinte, uns Estados Unidos Soviéticos da Europa. Desejou-a o romantismo fascista de Drieu la Rochelle que, em 1940, advogava ser preciso entrar no federalismo e pôr fim ao nacionalismo integral e ao autonomismo patriótico. Concretizou-a a democracia-cristã e a social-democracia do pós-guerra, de Konrad Adenauer a François Mitterrand, de Alcide de Gasperi a Harold Wilson, ao instalarem esta semente de mercado único e de Europa dos cidadãos em que estamos vivendo. Trata-se, com efeito, de uma Europa que, como dizia Raymond Aron, não tem religião secular, não tem Papa e não tem Imperador, sendo, contudo, dotada de uma ordem que não é imperial nem totalitária, mas que se funda numa mistura da hegemonia do mais forte e de um consentimento real dos menos fortes. É uma Europa dos Estados desiguais, um mitigado neofeudalismo, onde os vários Estados, apesar de conservarem simbolicamente a respectiva independência, reconhecem que há alguns Estados que são mais iguais do que outros e que, por isso, têm direito a um voto de qualidade, directamente proporcional ao número de cidadãos-eleitores e de regiões que cada um possui. Até porque esta Europa dos Estados engloba os mais diversos modelos de organização estadual. Desde os seculares Estados Nações, culturalmente homogéneos, aos Estados Multinacionais; desde os pequenos Grão-Ducados aos grande herdeiros de Império; desde os que ainda conservam fronteiras medievais aos que aspiram, ou lutam, pela unificação. É uma Europa onde vigora o princípio do “quod omnes tangit, ab omnibus approbari debet”, com o consequente realismo anti-igualitário da prevalência da “major et sanior pars”.Esta Europa a que chegámos, na Comunidade Europeia, constitui uma entidade dinâmica que vive o desafio de uma integração económica, social, cultural e política. De uma integração política que, segundo Ernest B. Haas, consiste num processo pelo qual “os actores políticos de várias organizações nacionais diferentes são personalidades a deslocarem as suas lealdades, expectativas e actividades políticas para um novo centro, cujas instituições possuem ou reclamam jurisdição sobre os Estados nacionais preexistentes”.O resultado final deste processo vai constituir uma nova comunidade política onde as comunidades anteriores são meras parcelas. Uma nova comunidade política que apenas se concretizará quando surgirem efectivos poderes no novo centro e se começarem a transferir interesses e lealdades para a nova organização.Tal consequência escapa, contudo, aos futurólogos, sejam profetas ou pretensos cientistas da prospectiva. Porque o normal nestes processos é haver anormais. Que o digam os projectistas de 1992 que não previram a eleição de João Paulo II nem a perestroika, apesar dos inúmeros especialistas em Igreja do Silêncio e em sovietologia. Resta interrogar-nos, como Agostinho da Silva: “teremos uma República Federativa da Europa, certamente – mas Federativa de quê? Federativa das nações renascentistas e pós-renascentistas? Não vou nada por essa solução. Continuarão os Escoceses sujeitos a Londres, os Flamengos a Bruxelas, os de Valência a Madrid? Vamos perpetuar Luís XI ou Carlos V? Tem de se dar uma volta completa e definir Pátria como a definiram Joana d’Arc em França, pela língua em que se brincou sendo criança, e Nun’Álvares aqui, pela terra que se beija antes de um combate que pode ser o último”.

 

Dez 30

apesar de nacionalista e europeísta, também sou federalista

Eu que, apesar de nacionalista e europeísta, também sou federalista, mais à Proudhon do que à Bismarck, mantenho a proposta do tradicionalismo consensualista e anti-absolutista: o “dividir para unificar” do primeiro projecto europeu. Primeiro, federalizar dentro de cada Estado, nomeadamente pelas auto-determinações nacionais que os restos de impérios proibiram. Segundo, lançar, também intra-estadualmente, os processos regionalizadores que os jacobinismos centralistas têm boicotado. Terceiro, utilizar o princípio da subsidiariedade não apenas a caminho de Bruxelas, mas devolvendo poderes à governação de proximidade: das autarquias, das regiões e dos Estados. A burocratite centralista, herdada do absolutismo, com a tradicional cunha  para a obtenção de uma certidão a tempo, pode transformar a democracia vigente num clube fechado, com reserva no direito de admissão.

Out 11

Uma teoria da Europa

A história da construção da unidade europeia concretizada a partir da segunda metade do século XX pode ser contada em meia dúzia de linhas, sem recorrermos às gastas citações que aparecem nos folhetos de divulgação e propaganda emitidos por Bruxelas, a essa perspectiva oficiosa da eurocracia sobre o nascimento do projecto europeu, onde certo revisionismo histórico estabelece uma espécie de linha justa da construção do modelo.  Essas vulgatas falam, por exemplo, na proposta de criação de uns Estados Unidos da Europa apresentada por Winston Churchill, no discurso de Zurique, de 19 de Setembro de 1946, mas não inserem a mesma na linha política tradicional britânica que apenas queria federar a pequena Europa – mantendo-se de fora, privilegiar o atlantismo e manter a Commonwealth. Refere-se também a criação da OECE em 1948, tendo em vista a gestão do Plano Marshall, lançado no ano anterior, mas acentua-se o aspecto da integração económica internacional, desdenhando-se do confronto entre Moscovo e Washington, no processo da guerra fria e até se cita desgarradamente a instituição do Conselho da Europa pela Convenção de Londres de 1949. Contudo, convém insistir que a antiquíssima ideia de reconstrução de uma unidade política da Europa, de certa maneira, concretizada no plano político pelo Império Romano e no plano político-religioso, pela Igreja Católica Apostólica Romana durante a Idade Média, sempre esteve na base dos grandes projectos de Império desencadeados pelas grandes potências europeias da Idade Moderna e Contemporânea. Foi este sonho que animou a Espanha de Carlos V e Filipe II, a França de Napoleão Bonaparte e as várias Grandes Alemanhas, lideradas pelos Habsburgos, pela Prússia ou por Adolfo Hitler, já que os ingleses, conscientes das respectivas vulnerabilidades no plano continental, sempre preferiram conter uma das outras potências no teatro europeu, para poderem continuar a expandir-se noutros continentes. Acontece apenas que este choque de Impérios conduziu a mortíferas guerras na Mitteleuropa que, neste século, produziram aos grandes desastres humanos que constituíram as duas guerras mundiais. Compreende-se, pois, como depois de 1945 se procurou um efectivo tratado de paz entre as duas principais potências da Mitteleuropa, a França e a Alemanha, a fim de se destruírem as causas dos potenciais conflitos. Assim, surgiu, em plena guerra fria, a ideia de um mercado comum do carvão e do aço que, em 1951, com o Tratado de Paris, vai conduzir à criação da primeira das Comunidades Europeias, a CECA. A geração que concretizou este modelo, se vivia a euforia do planeamentismo económico, se tinha consciência que os problemas económicos só se resolviam com soluções económicas, não se podia, contudo, integrar na categoria dos meros tecnocratas.  Os pioneiros da Europa comunitária eram essencialmente animais políticos, isto é, sabiam que os problemas económicos não eram apenas problemas económicos, adoptando o método de curar o económico através do económico, mas não apenas através do económico, para parafrasearmos Emmanuel Mounier. Eles sabiam que a economia tinha de ser conduzido pela política, que a política tinha de ser norteada por ideias e que a superação das questões sociais da Europa de então tinha de ser comandada por um sonho. Só que ensaiaram realizá-lo, não pelos métodos da guerra, mas através da persuasão política, da negociação diplomática, do planeamento, da tecnocracia e da burocracia. E passaram do plano das boas intenções, desencadeando o processo de uma realidade nova: a Europa Comunitária.  Em 1957, depois dos fracassos da CED e do projecto da Comunidade Política Europeia, já não bastava a restrita integração sectorial do carvão e o aço. Era preciso um mercado comum, com livre circulação de pessoas, mercadorias, serviços e capitais e uma unificada política agrícola, bem como uma conciliação no plano da energia atómica. E assim surgiu a CEE e a EURATOM, com o Tratado de Roma.  O modelo atingia o ponto de não regresso e estava suficientemente maduro para alargar-se, dos seis Estados iniciais, a todos os vizinhos europeus que se identificassem com o núcleo duro no plano político, económico e social. Assim, algumas décadas volvidas, além da França, da Alemanha/RFA, os pilares do processo, da Itália, e dos três parceiros do Benelux – Países Baixos, Bélgica e Luxemburgo -, eis que vão chegando, depois de muitos percalços, o Reino Unido, a Irlanda, a Dinamarca, a Grécia, o nosso Portugal e a Espanha, sem esquecer o alargamento à própria Alemanha/RDA, depois da queda do Império Soviético. Mais recentemente com o alargamento à Europa Central e Oriental, desde os países bálticos e outros antigos satélites dos soviéticos até às ilhas de Chipre e Malta, o projecto atingiu uma via de plenitude, onde a quantidade corre o risco de afectar a qualidade da construção, mas onde também o sonho pode compensar as dificuldades da obra. O desafio que os europeus enfrentam talvez constitua um dos mais importantes reptos políticos da história da humanidade. Seria trágico que essa grandiosa missão ruísse por questiúnculas politiqueiras. Seria ridículo que o europeísmo se reduzisse ao discurso europês, mesmo que disfarçado nas constituições valerias. A Europa é uma democracia de muitas democracias. Não é uma super-estrutura comissária, directamente irresponsável perante os povos – uma espécie de sacro-império burocrático em regime de despotismo iluminado, mesmo que com boas intenções construtivistas -, nem um super-congresso multitudinário sem respeito pelas democracias vivas e directas dos vários cantões nacionais. Perspectivando o processo a partir das nossas circunstâncias, podemos dizer que os interesses portugueses nada têm a ganhar com o regresso da clássica distinção entre Estados Directores e Estados Secundários, numa balbúrdia, donde, a prazo, apenas beneficiariam as médias potências capazes de liderança no pelotão da divisão de honra, como agora, muito eufemisticamente, chamamos à tradicional segunda divisão, a tal que está abaixo da que lidera a honra. Só beneficiaremos com a politização do processo quando se desvendarem muitos dos mistérios da antecâmara, muito especialmente os reais conflitos internos da euroburocracia e da europarlamentocracia, contribuindo-se para a superação do equilíbrio instável, com a consequente procura de uma nova ordem europeia.   A Europa em que eu acredito, aquele projecto que leio nas entrelinhas dos pais- fundadores, é uma Europa que foi feita contra os erros políticos que levaram ao permanente confronto de impérios europeus. Logo, há que denunciar o facto de os Estados a que chegámos na Europa das potências ainda continuarem inconscientemente feudalizados por projectos imperiais frustrados. Da Espanha de Carlos V, à França de Napoleão. Da Alemanha de Hitler à Inglaterra de outras procuras de Império no além mar. Da Rússia sonhando-se polícia da Europa a outros impérios espirituais ou económicos.  E estes modelos talvez contrariem aquilo que a Europa do pós-guerra tentou ser. Essa outra coisa que ousou procurar a esquecida unidade da respublica christiana na diversidade dos reinos, dos povos e das nações. Essa tentativa de escrituração de um novo capítulo para além da dinâmica da vontade de poder dos Estados Directores em confronto, instrumentalizando uma multidão de Estados secundários. Esse sonho que tentou refazer os Estados à maneira do chamado regresso da política, do dividir para unificar. Promovendo uma descolonização interna da Europa, para reconstruir a casa comum, em torno do que era efectivamente comum. Se os tratados de Maastricht, Amsterdão e Nice foram coisas péssimas, talvez tenham sidos coisas menos péssimas que outras mais péssimas alternativas que, nessas encruzilhadas, se nos apresentavam. Com efeito, seria bastante mais dramática aquela alternativa que nos conduziria a um qualquer regresso ao confronto dos três impérios vencedores da história recente – o Reino Unido, a Alemanha e a França. Haveria a tragédia de uma verdadeira Europa de muitas velocidades, onde os que menos poderiam correr regressariam à condição de Estados Secundários, feudalizados ou satelitizados pelas potências directoras, onde o chamado sistema Metternich retomaria lugar de comando. E aí basta recordar a terrível consequência de tal modelo em Portugal – a guerra civil de 1828-1834. Importa, contudo, reconhecer que esta Europa institucional que vamos tendo, se é formal continuadora do projecto dos Tratados de Paris e de Roma da década de cinquenta do século XX, talvez não continue integralmente fiel ao espírito dos fundadores desse formidável movimento de lançamento do Estado de Direito que se sucedeu à Segunda Guerra Mundial.  A Europa não está apenas nas margens do Reno nem acaba com o alargamento a certas zonas ribeirinhas do Báltico, do Atlântico e do Mediterrâneo. A Europa, neste virar do milénio, pode voltar a ser a ideia da Europa, pode ir da Ilha do Corvo a Vladivostoque. Pode juntar as Três Romas e todos os respectivos projectos de Renascimento. Pode e deve ser mais do que um mero processo de ultrapassagem dos contenciosos franco-alemão, britânico-continental ou hispano-central.  A Europa somos nós, as pessoas, os cidadãos, os povos e as nações, não são apenas eles, os eurocratas, os parlamentocratas, e todos os cratas que temem as vozes irreverentes dos que não são moldáveis pelos unidimensionais partidos, sindicatos e patronatos, cada vez mais neocorporativamente enquistados no statu quo, esses estados que condicionam os Estados.  Quem me der poder dizer que chegou a hora de uma Europa mais livre e mais unida, enraizada no direito à pátria e já descolonizada de algumas tentações imperiais, capaz de dizer a todas as nações sem Estado deste nosso tempo que a exigência dos grandes espaços não tem que ofender os princípios da auto-determinação nacional.  O principal perigo dos actuais meandros do projecto europeu continua a ser a tentação de regresso ao sistema da Europa dos projectos imperiais frustrados, desses que querem assumir-se como Estados Locomotivas, feudalizando todo o processo de construção europeia.  Foi esse o erro da Europa de Metternich e Talleyrand. Foi essa a tentação do pós-Grande Guerra e a causa da Segunda Guerra Mundial. É contra este modelo de federação dos impérios frustrados da Europa que a República Portuguesa tem de resistir, invocando a possibilidade do grande espaço europeu continuar uma hipótese de conciliação das liberdades dos povos contra as perspectivas absolutistas do estadualismo e do soberanismo. E que reagir, não apenas em nome da liberdade de Portugal, mas também em nome da liberdade da Europa, da liberdade de todos aqueles povos da Europa que continuam a ser nações. As recentes paixões identitárias que levaram as instituições europeias a reclamarem uma Europa dos princípios, mobilizada pelas ideias de Estado de Direito, de democracia e de direitos do homem, impõem um regresso para seguir em frente, um regresso aos grandes combates de ideias sem as quais a Europa se diluirá nas teias de uma globalização de merceeiro.  Primeiro, está democracia. Porque a Europa tem de ser uma democracia de muitas democracias, directamente responsável perante todos e cada um dos povos europeus. A Europa política não pode ser um qualquer sacro-império burocrático, em regime de despotismo iluminado, mesmo que com boas intenções construtivistas, como aquele que perpassa por certo elitismo voluntarista de alguns eurocratas que se julgam iluminados pela pretensa razão do Euro-Estado, misturando assim os contrários de certo hegelianismo e de certo maquiavelismo. Do mesmo modo, não pode tornar-se numa espécie de super-congresso multitudinário sem respeito pelas democracias vivas e directas das repúblicas que a integram.  Segundo, o repúdio de qualquer neo-imperialismo de fachada europeísta. Com efeito, qualquer ideia de construção política europeia, seja federalista ou confederacionista, invoque o princípio da integração política ou o da cooperação política, que assuma a existência de núcleos duros ou Estados locomotivas tende para um neo-imperialismo de fachada europeísta, onde serão fatalmente satelitizadas as comunidades políticas que não podem assumir o estatuto de potências.  A única ideia de construção política da Europa que convém à República Portuguesa é a ideia que convém à Europa dos povos, das pátrias ou das nações e à Europa dos cidadãos.  A ideia da Europa que permita destruir a degenerescência de um núcleo duro de soberanismos absolutistas. A Europa só pode unir-se e integrar-se, federando-se ou confederando-se, desde que pratique o dividir para unificar, desde que a semente da unidade passe além e aquém dos modelos de estadualismo existentes, desde que possa ser praticada a unidade na diversidade.  Só pode haver transferência de lealdades, expectativas e interesses para um novo centro político, desde que não se eliminem centros políticos de ordem inferior, a nível local, regional ou nacional. Por outras palavras, desde que se abandone aquele conceito absolutista de construção do político que concebe os Estados a que chegámos como o fim da história nesse tipo de construção. Como se não houvesse político antes do Estado, isto é, nas autarquias ou nas regiões, e como se não pudesse haver político além dos Estados. Os Estados a que chegámos são apenas repúblicas maiores, feitas de outras repúblicas particulares e caminhando necessariamente para outras ainda maiores e ainda mais universais, como diria o jurista da Restauração João Pinto Ribeiro. O princípio da subsidiariedade constitui, neste contexto, o elemento mais fecundante do actual processo de construção europeia, permitindo superar a tradicional disputa entre federalistas e unionistas, gradualistas e maximalistas, funcionalistas e fundamentalistas. O princípio pode transformar-se no denominador comum que propicia o diálogo, constituindo a ponte necessária para a vivificação da ideia de Europa. A grande herança político-cultural europeia, a do humanismo cristão e a do humanismo maçónico, podem, deste modo, dar as mãos em torno do mesmo tópico, para repudiarem a degenerescência estatolátrica e soberanista que destruiu a grande unidade das res publica europeia. Seria suicidário que agora tentássemos um novo salto em frente normativista ou uma revolução vinda de cima. Seria utópico exigirmos aquilo que apenas fingimos ser: a formal igualdade dos Estados Soberanos a que chegámos, como se os Estados algumas vezes tivessem sido iguais e como os menos iguais alguma tivessem tido qualquer plenitude soberana…  A Europa pode e deve ser o continente aberto e a plataforma giratória de todo o mundo, conciliando a ambiguidade euroasiática dos países da Europa Oriental, como a ambiguidade euroafricana ou euroamericana das antigas potências coloniais da Europa ocidental.  A vulnerabilidade desta contradição ontológica constitui, sem dúvida, a principal potencialidade da Europa. Isto é, a unidade da Europa será tanto mais universal quanto mais enraizada autonomia tiverem as suas diferenças. Só há, aliás, unidade se houver harmonia na diversidade. Cada Estado membro criou a sua própria expectativa quanto à construção europeia e a Europa passou a ser, sem dúvida, o resultado desse paralelograma de forças, projectos, esperanças e desconfianças. O segredo da resistência da construção europeia está precisamente na conciliação entre o interesse de cada comunidade política parcelar e o interesse global da entidade europeia.  Aquilo que dissemos para o Estado Soberano pode também dizer-se para a entidade europeia que se vai projectando e construindo. Ela também é pequena demais e grande demais, em simultâneo.  Há que exigir uma Europa mais Europa, uma Europa que, retomando os desejos da geração dos pais-fundadores, trate de recomeçar pela cultura e de apostar na educação. Há que exigir uma Europa dos cidadãos, uma Europa que comece pelo fundamento de qualquer polis, a cidadania pela paideia. A Europa política não pode ser um super-Estado, um grande Leviathan. A Europa da vontade geral tem de ser uma Europa dos povos, chamem-lhe nações, cantões, pátrias ou regiões. A Europa política não pode copiar o modelo dos anteriores projectos de Império ou de Monarquia Universal, com pretensões a Estado Mundial, como prepassa em certos conceitos de Europa Fortaleza.  A táctica negocial portuguesa tem, pois, de conciliar permanentemente o patriotismo com o europeísmo, porque os dois movimentos, não são incompatíveis, porque se exigem reciprocamente. Desde que não se entenda o europeísmo como uma espécie de prisão das nações. Desde que não se reduza o patriotismo à reinvenção de um soberanismo ultrapassado.  A República Portuguesa é hoje um mediano Estado que exige o small is beautiful na construção do político. Que exige do político não ser grande demais, levando à exclusão da participação na decisão, como é exigência de qualquer cidadania. Não pode confundir-se com os modelos de manutenção do Estado que necessitam de esmagar ou comprimir aquilo a que eufemisticamente chamam nacionalidades ou regiões.  O nosso modelo de nação, anterior a Maquiavel e a Bodin, bem mais antigos que o conceito absolutista, territorialista e concentracionário de Estado Moderno, pode servir de inspiração para a conciliação do grande espaço europeu com o princípio da liberdade dos povos. O nosso modelo de patriotismo nada tem a ver com pan-nacionalismo de alguns projectos imperiais europeus que ainda persistem. Nem sequer pode confundir-se com modelos de irredentismo sem conteúdo histórico, como de muitos nacionalismos sem nação. O espaço supra-estadual e plurinacional da União Europeia tem de dar uma pátria a cada povo e que admitir que várias nações possam conviver no mesmo espaço, através do respeito por aquele fundamentalismo europeu que é a consideração do respeito pela autonomia ética da pessoa humana. O princípio da subsidiariedade implica distinguir para unir e não o seu inverso o dividir para reinar. A Europa que sonho vir a ter poderá ser uma res publica dotada de um novo centro político para onde se transferirão lealdades, expectativas e interesses dos cidadãos europeus, mantendo-se, embora os anteriores centros políticos do modelo do Ocidente dos Estados. O tempo de interregno que durante muitos anos vamos continuar a viver, implica, inevitavelmente aquilo que Raymond Aron qualificava como uma nova ordem marcada pela mistura da hegemonia do mais forte e de um consentimento real dos menos fortes. Logo, nesta Europa dos Estados, onde se misturam os mais diversos modelos de organização do político, desde seculares Nações-Estados a Estados plurinacionais, desde pequenos grão-ducados a potências herdeiras de modelos de Império, desde os que conservam fronteiras medievais aos que ainda sonham com unificações, separatismos ou reestruturações territoriais, onde abundam minorias nacionais e alguns povos sem pátria, não podemos deixar de ter um mitigado neofeudalismo de Estados desiguais, onde alguns deles terão de ser mais iguais do que outros, com voto de qualidade proporcional ao número de eleitores ou de regiões que cada um possui. Admitir a subsidiariedade, corresponde assim a introduzir divisibilidade na própria soberania, permitindo transferir parcelas destas, tanto para cima, para um centro supra-estadual, como para baixo, para novos centros infra-estaduais. Só depois desta distinção pode unificar-se. Só então pode haver federação ou confederação, federando ou confederando, não as quinze divisões estaduais existentes, todas elas concentracionárias, mas as pluralidades geo-humanas, locais ou regionais, e as pluralidades interpessoais, dos vários grupos. A República Portuguesa nada deve temer desse modelo, porque nem é pequena demais, nem grande demais. Aliás, a única forma de poder resistir na sua dimensão, passa por ter um espaço onde possa fugir aos diálogos bilaterais das suas alianças e confrontos ancestrais. Só a multilateralidade de uma grande Europa, como a da actual União Europeia lhe permite potenciar a autonomia.  A Europa que interessa a Portugal é a Europa que tenha uma alma, como dizia Robert Schuman, a tal Europa que possa recomeçar pela cultura, como acrescentava Monnet. E não haverá Europa se esta não for entendida como uma polis, como um conjunto de cidadãos, onde só é cidadão aquele que participa nas decisões. Mas a polis Europa só o poderá ser se se assumir como o resultado da complexidade das poleis que a história gerou, como ânimo comum assente nas comunidades efectivas que a formam e conformam. Qualquer europeísmo que caia na tentação de criar um super-Estado, uniformizado, centralizado e concentracionário, em nome de um despotismo esclarecido e utilizando a metodologia da Europa confidencial, através da elefantíase legiferante e do regulamentarismo, nada mais faz do que elevar o soberanismo absolutista à escala europeia. Destruir o soberanismos dos Estados, mantendo-o num centro político supra-estatal é deixar entrar pelo sótão aquilo que pretendeu, em boa hora, defenestrar-se; Só uma Europa consciente de que os problemas económicos só podem ser resolvidos por medidas económicas, mas não apenas por medidas económicas, pode ser viável e fiel ao ideal europeu. O que crescer a partir de um mercado único e de uma união económica e monetária, mas ser diferente dos modelos de free trade, implicando mais alma, mais cultura, mais cidadania e mais política, mas através de uma perspectiva pluralista e poliárquica. Quem me dera poder dizer ser a vez duma Europa mais livre que, abandonando a tentação dos Estados Directores, proclame que a unidade não exclui a diversidade e, muito menos, o orgulho das seculares franquias nacionais. Uma nova espécie de organização política de um grande espaço inter-estadual e inter-nacional. Uma realidade nova que trate de quebrar as estafadas classificações das federações e das confederações; que ultrapasse e surpreenda o ius intercivitates procedente do modelo da Paz de Vestefália, do cuius regio ejus religio destruidor da unidade da respublica christiana, e do regime da hierarquia das potências consagrado pelo sistema Metternich após a Conferência de Viena. Este especial momento de encruzilhada do processo de construção europeia, é um especial revelador desta Europa institucional que vamos tendo, a qual, se é formal continuadora do projecto dos Tratados de Paris e de Roma da década de cinquenta do século XX, talvez não continue integralmente fiel ao espírito dos fundadores desse formidável movimento de lançamento do Estado de Direito que se sucedeu à Segunda Guerra Mundial.  Com efeito, a presente encruzilhada, marcada pelo jogo do “sim” e do “não” em torno da Constituição Europeia, importa assumirmos a plenitude da cidadania europeia e não nos considerarmos europeus de segunda velocidade, na periferia de uma geometria variável que nos obrigue ao temor reverencial e à filosofia da mão estendida ao subsídio do fundo estrutural. Até me apetece dizer “sim” a uma Europa pós-soberanista e até federalista, se entendermos por federação, não o neofeudalismo dos impérios frustrados que se pensam locomotivas do projecto europeu, mas o sonho antijacobino de uma democracia de muitas democracias e de uma nação de muitas nações, atingindo o universal pela diferença! E quem reduzir o nacionalismo ao soberanismo até deve reparar que um dos nossos primeiros teóricos da tal soberania se chamava Miguel de Vasconcelos e estava ao serviço da soberania dos Filipes!  Há, com efeito, uma parcela do “sinzismo”, talvez minoritária, que tem o “cinzismo” dos sucessivos situacionismos, marcada pelo conformismo do “sim, senhor” e com argumentos que tanto davam para defender o último dos impérios coloniais da Europa, como para justificar a nossa não-opção pela democracia. E custa ver o europeísmo enrodilhar-se nesta falta de espinha dos que, submetendo-se para sobreviverem, não conseguem compreender que vale a pena lutarmos, para continuarmos a viver.  Por isso é que alguns povos europeus têm rejeitado o convite para certas músicas celestiais de eurocratas, não aceitando certo europeísmo de pronto-a-vestir, que não assume a simplicidade do conceito de vizinho, de amigo, de compatriota e de europeu. Muitos não querem ser tratados como párias do come e cala Caso se mantenha a intenção de dar democracia ao processo de edificação do projecto europeu, julgo que importa assumirmos a necessidade de uma Europa dos homens comuns com signos efectivamente mobilizadores. Esses burocratas e subsidiocratas, higienicamente transnacionais, que se passeiam por aeroportos e programas de propaganda quase colonial, não podem continuar a refugiar-se à sombra dos belos símbolos da bandeira azul das doze estrelas e do hino de Beethoven.  Neste sentido, importa denunciar particularmente a parcela tecno-burocrata do modelo codificador do “estado a que chegámos” na Europa, onde, à irreverência dos nobres criadores do projecto, sucedeu o cinzentismo dos gestores de obra feita e os privilégios dos fidalgotes. Porque foram os eurocratas, partidocratas e subsidiocratas que definiram o processo de audição convencionalista, através de um sistema de canalização da opinião pública onde acabou por funcionar o processo do macaco cego, surdo e mudo, desta ditadura de perguntadores que quase insinuam a resposta, nesta procura de um código único para a pretensa “ordem e progresso”. Só que tal construtivismo, vanguardista e codificacionista, virou frustração quando pretendeu unidimensionalizar a complexidade europeia. O problema está menos neste ou naquele princípio da pretensa constituição, mas principalmente no método. Já não estamos no tempo dos movimentos de massas das elites dos congressos europeístas do pós-guerra. Nem na época da Europa confidencial e do método dito “furtivo” do “federalismo sem dor”, quando Monnet usava a “porta das traseiras” do grupo de pressão para se preparar o relance europeísta. O alargamento não gerou aprofundamento. A quantidade não foi acompanhada pela qualidade. O salto em frente, mais uma vez, não resultou, como sucedeu com o fracasso da CED (1954) e com os meandros da emergência do gaullismo (1958). A Europa, enquanto OPNI (objecto político não identificado), precisava deste desafio, para se quebrar o ciclo eurocrático e dos líderes com cara de plástico, bem como do domínio da federação dos impérios frustrados que se assumiam como a locomotiva do projecto.  E muito menos podemos chegar a uma Europa como comunidade que se ame, se se enveredar pelo jacobinismo de uma decisão multitudinária: por exemplo, de um só referendo num só dia. A Europa só pode resistir se continuar como uma democracia de muitas democracias e como uma nação de muitas nações. Por mim, admito que é possível “dividir para unificar”, dividir os estadualismos e soberanismos que são prisões de povos e nações, para se atingir a unidade na diversidade. Se jamais serei eurocéptico e soberanista, também não alinharei com cínicos nem com jacobinos ditos idealistas: posso continuar nacionalista, federalista e pluralista e, para ser europeísta, não preciso de pedir autorização aos dois partidos dominantes do Bloco Central eurocrático.  Já estamos bem longe da defunta polémica entre os eurocépticos e os europeístas, onde os primeiros se acantonariam na extrema-direita e na extrema-esquerda e os segundos, no grande Bloco Central de interesses que, invocando os fantasmas dos nacionalismos fragmentários lançavam para os nossos olhos as maravilhas do mundo global, onde se inseria uma Europa toda cor de rosa sem espinhos. Mesmo as sumidades politológicas de importação terão que alterar os relatórios pré-programadas dos caçadores de eurocépticos alquebradamente salazarentos, dado que agora aparecem, ao lado do “não”, convictos europeístas, certos federalistas, bem como sociais-democratas, socialistas, liberais, juntamente com conservadores, nacionais-revolucionários ou eternos adeptos da extrema-esquerda. Com efeito, muito do europês que por aqui circula através de várias traduções em calão é quase equivalente ao paradoxo dos que vivem o drama de um aparelho de Estado que precisa de perder a banha da empregomania, mas sem descalcificar a ossatura e a agilidade muscular. O tal aparelhismo alimentado a imposto que gerou intervenção na economia e na sociedade e que levou àquilo que Habermas vem qualificando como a “repolitização da esfera social”. O tal “Estado de Bem Estar” que, segundo Cotarello, passou a “Estado de Mal Estar” e que tem provocado, já há várias décadas, um processo de crescente auto-limitação do monstro, onde neo-liberais e neo-socialistas têm comungado num programa de privatizações e de des-regulações. Talvez volte a ser urgente uma nova cultura de análise desta encruzilhada, mas através de uma reinvenção teórica. Só que, infelizmente, continua a ser cedo, aqui e agora, para a superação do dicionário dos mestres-pensadores, para a ultrapassagemn da fragmentação dos paradigmas dominantes, isto é, dos vários pensamentos únicos e dos vários “politically correct”. Por mim, prefiro o regresso à “polis”. Num “reculer pour mieux sauter”, não para citar Lenine ou Napoleão, mas o original de Leibniz. Para regressarmos à cidadania, enquanto participação. Corrigindo os excessos oligárquicos deste megademocracia representativa, dominada pelos pensadores oficiosos das homilias situacionistas e dos contra-poderes opinativos gerados pelos controladores dos regimes. Regressemos à origem romana do conceito de “publicum”, onde, mui republicamente, apenas podia ser público o que era horizontal, pacto, consenso, “sponsio rei publicae”, confiança pública. Onde o povo igual, o povo comum, em comício, respondia à provocação do magistrado para emitir o máximo da lei, que nunca foi o que vem de cima para baixo, mas antes o que vem de baixo para cima. Regressemos ao globalismo estóico, sucessivamente reinterpretado pela “respublica christiana” e pelo “ius publicum” europeu, de Leibniz e de Kant, nesse conceito de “paz perpétua” que, actualmente é equivalente ao modelo de Estado de Direito universal. Mas não esquecendo que só se alcança o universal pela diferença, dividindo para se unificar, gerando unidade pela variedade. O que implica deseconomicizarmos o global, num crescendo que passa pelo local, pelo público e pelo global, numa quase coincidência com essa ascensão do individual, estatal e humanitário, o triângulo evolutivo da complexidade crescente onde devemos eliminar o conceito de Estado como sinónimo de público e o conceito de legalidade como equivalente ao de direito e de justiça. Só assim poderemos ter uma “patria chica” sem paroquialismos. Uma cidade sem bairrismos. Uma nação sem nacionalismos. Um Estado sem soberanismos. E um global universal, sem desprezo pela diferença. O global dos muitos arquipélagos de autonomias, unidas de centro a centro, de cabeça a cabeça, de interior a interior, sem cedência aos cilindros compressores dos unidimensionalismos. O universal é descobrirmos que, dentro de cada indivíduo, já lá está o sinal de universal. Que o homem é um fenómeno que nunca se repete. Um solitário, um bom selvagem que pode ser lobo do homem se não for bem educado. Se não reparar que, ao lado da sua dimensão de solidão, há uma dimensão social, política e global. Que, ao lado do solitário, há o cidadão, que não é concessão do Estado, mas antes um espaço de autonomia que tem de nascer de novo, que tem de resistir, de baixo para cima, de dentro para fora. Para que todos possamos crescer. Em progresso quantitativo de melhoramentos materiais, mas também em progresso qualitativo, onde não basta o crescer para cima, exigindo-se o crescer para dentro, para que os homens possam voltar a fazer a história, mesmo sem saberem que história vão fazendo.

Jun 08

A Europa da pluralidade de pertenças e o regresso à política

Defender a ideia de Europa no contexto deste processo pós-referendário implica reconhecer, na senda de Daniel Bell, que o Estado a que chegámos é, ao mesmo tempo, pequeno demais para os grandes problemas da vida e grande demais para os pequenos problemas da vida. Ele é pequeno demais para resolver os grandes problemas do nosso tempo (a economia, a segurança, o ambiente, a tecnologia, a saúde) e, para o efeito, sob o alento da aldeia global, vamos tentando projectar e construir, por todo o lado, grandes espaços. Mas também é grande demais, pelo menos quanto à participação política e à humanização do poder, e muitos vão exigindo desconcentração, desregulamentação, descentralização e regionalização. Implica também assinalar que acabou certa era das ideologias da guerra fria quando se transformaram questões concretas em questões ideológicas, colorindo-as com uma tensão ética e uma linguagem emocional. Porque, aqui e agora, nós, os herdeiros da liberdade europeia, marcados tanto pelas tradições do humanismo laico como do humanismo cristão, estamos cansados das artificiais divisões entre a direita e a esquerda e dos consequentes combates entre reaccionários e progressistas ou entre liberais e socialistas, e talvez tenhamos de aceitar que só podemos superar as encruzilhadas da história se admitirmos o essencial da perspectiva da pluralidade de pertenças e da consequente “disjuntion of realms”, da existência de princípios axiais diferentes nos campos da economia, da política e dos valores culturais. Já Emmanuel Mounier, nos anos trinta e quarenta do século XX, se dizia, ao mesmo tempo, radical nos objectivos económico-sociais, reformista nas metodologias políticas e conservador no tocante aos valores. Como recentemente o citado Daniel Bell admitiu uma aproximação ao socialismo nos domínios da economia, mas com uma profissão de fé liberal em política e uma atitude conservadora quanto ao valores culturais. Talvez seja esta pluralidade de pertenças, contrária aos reaccionários preconceitos de esquerda e de direita que nos leve de volta a certa memória liberdadeira e radical, em nome dos princípios, necessariamente reformista no tocante às atitudes políticas e defensora dos grandes princípios do regresso à política. Esse horizonte, onde necessariamente se insere a ideia de Europa que sufragamos. O regresso à política, a retomada da “res publica”, a reinvenção da cidadania, são a única forma de superarmos as actuais doenças dos sistemas políticos, sitiados pela corrupção e pelo clientelismo. As causas que têm gerado as actuais vagas populistas, xenófobas e racistas que ameaçam a Europa. Sintomas que só podem ser removidos se à terapêutica acrescer a profiláctica de uma educação cívica, capaz de retomar uma perspectiva liberdadeira de pessoa, uma perspectiva comunitária de sociedade e uma visão do Estado como um Estado-Razão e um Estado de Justiça. Apenas receio que se trate de manobra de propaganda dos eurocépticos visando o futuro referendo sobre a futura constituição dita europeia. Ou de contra-informação norte-americana, atacando mais um dos excelentes relatórios do mesmo deputado europeu do PPE. Ontem gostei mais de ver a reportagem televisiva sobre o turismo intra-europeu da chamada extrema-direita, que é coisa que gosta de fazer caçadas e normalmente sai caçada. Verifiquei que as nossas forças da ordem gostam de ver televisão e que, como também são caçadores, caçaram imediatamente quem disse que ia para a rua pôr a ordem nova. O político que tal proclamou, conforme dizem os jornais, é profissionalmente aquilo a que chamam “segurança”. Julgo que, de acordo com a legalidade, se ainda houvesse PIDE ou DGS, bem como regras do tempo da Constituição de 1933, as forças da ordem velha teriam que fazer o mesmo do que fizeram estas, com a mesma exemplar diligência com que, além de caçarem estas caricaturas, irão amanhã caçar os defensores da violência pintada de esquerda, centro ou direita. Basta recordar que, entre os primeiros detidos da PIDE, fundada em 1945, com alguma inspiração britânica, estavam vários nazis refugiados em Lisboa, como se Salazar se tivesse esquecido que Herr Hitler mandara assassinar na Áustria o seu companheiro de ideias corporativas e beatas, Herr Dolfuss. Quem tiver dúvidas, basta ler os folhetos de defesa dos nazis feitos no imediato pós-guerra por Alfredo Pimenta e ir aos arquivos da polícia política do Estado Novo, à secção permanente que mantinham, na luta contra os adeptos da suástica e similares.  Julgo que a RTP começa a sair da casca com este tipo de reportagem sobre o nosso quotidiano, depois da que fez, uma semana antes, com a violência nas escolas. Sugiro que a próxima visita das câmaras passe por umas reuniões de acampamentos trotskistas, para , depois, filmarem conspirações de pedófilos, assaltantes de rua, mafiosos, “hooligans”, aderentes ao terrorismo fundamentalista, etc., a fim de ficarmos a saber como temos necessidade de polícias, tribunais e prisões, desses “aparelhos” movidos a repressão que garantem ao Estado o monopólio legítimo da violência legítima. Do que vi na televisão, a reportagem foi exemplar, não havendo sequer necessidade de um carimbo ideológico nas lentes usadas, pelo tradicional recurso aos teóricos da esquerda revolucionária que ganham a vida como congreganistas do “caça-fascistas”, tal como outros procuram os fantasmas dos que querem enforcar o último padre nas tripas do último papa, e vice-versa.