Jun 13

Cunhal. Comunistas. Neo-realismo

Dois dias depois de Vasco Gonçalves, sobe ao Olimpo dos elogios fúnebres o nome de Álvaro Cunhal, um dos mais coerentes estalinistas do século XX que sempre ousou levar à prática o movimento político-literário do neo-realismo, onde se destacou como pintor e romancista. E será como esteta que o respectivo nome se libertará da lei da morte. Julgo que a grandeza deste político profissional deveria ficar imune aos já indecorosos obituários que, logo à tarde, vão certamente inundar as rádios, as televisões e a imprensa escrita, porque o pretenso pai da república não deveria, um quarto de hora antes de ser elogiado, tentar voltar ao processo de revisionismo histórico estalinista que marcou a respectiva adolescência. Já chega. Seria bem melhor que meditasse sobre a circunstância de, entre as datas das mortes de Gonçalves e Cunhal, se ter comemorado o vigésimo aniversário da adesão de Portugal ao projecto político de construção europeia, no preciso momento em que o mesmo sofre o mais grave desafio que viveu desde 1954. De Cunhal, não posso fazer o sóbrio elogio que dele fez a magnífica pena do respectivo camarada Miguel Urbano Rodrigues, nem guardo, no armazém da memória, as tendências recalcadas dos antigos companheiros, ou adversários da extrema-esquerda, bem como os encantos que suscitou nos inimigos burgueses ou fidalgotes. Prefiro recordá-lo em figura humana, como quando há poucos anos o encontrei nos corredores do hospital Egas Moniz, já bastante doente, com aquele porte altivo de grande estratega de uma guerra ideológica global, onde alinhou com a parte felizmente vencida. Nascido em 10 de Novembro, na minha própria terra, este beirão de fibra aristocrática, conseguiu transformar o comunismo português numa radicada concepção do mundo e da vida, teluricamente neo-realista, marcada pela fidelidade de uma aristocracia camponesa e operária que os próprios adversários têm de reverenciar. Como desse grupo hermético disse Agostinho da Silva, ele acabou por constituir uma verdadeira ordem religioso-militar, obedecendo a um comando unificado que tanto o fez enfileirar no mais estrito sovietismo, considerado “o sol da terra”, quando as nuivens da verdade pós-totalitária já o ensombravam, como, depois, o transformou numa força patriótica, emocionadamente portuguesa. Julgo que esta última fase de vida do PCP, onde o cunha lismo resistente vai do prémio Nobel José Saramago ao aristocrata operário Jerónimo de Sousa, talvez estivesse mais de acordo com a índole do sucessor de Bento Gonçalves, saudoso de uma revolução perdida, à maneira da que sonhou poder ser a de 1385, ou até a de 1640, nada tendo a ver com o internacionalismo estalinista ou brejneviano que teve de servir, nos tempos mecânicos e “KGBistas” da guerra fria. Elevado aos altares laicos pela seita da clandestinidade, Cunhal, no âmbito da nossa hagiografia antifascista, é uma espécie de irmão-inimigo de Mário Soares, onde, para se completar a trindade, importa recordar António de Oliveira Salazar , à imagem e semelhança do qual os dopis outros foram fabricados. Se Cunhalé a faceta aristocrática do anti-salazarismo, Soares reflecte o diletantismo burguês, mas ambos têm o perfil do longo prazo daquele modelo de poder que os produziu. De qualquer maneira, a trindade que marcou Portugal no século XX tentou sempre trabalhar para a história, procurando escrever uma espécie de livro único para educação das gerações futuras. Daí que todas as declarações públicas e escritos dos ditos visem sempre disfarçar a verdade e evitar a espontaneidade dos sentimentos. De qualquer maneira, Salazar , Cunhale Soares representam, todos e cada um deles, um certo perfil de resistência patriótica, demonstrando que a portugalidade se manifestou tanto no catolicismo político do pai-tirano, como no comunismo clandestino e sovietista, ou no paradoxal liberalismo socialista. E nós, filhos que somos deste processo, amando e odiando, mas sem nunca lhes sermos indiferentes, apenas temos de reconhecer que a vida continua em convergência e divergências, para que a emergência da libertação nacional não seja nota de página de uma pátria em vias de extinção. Especialmente nestes finais de primavera, onde acaba também de chegar a notícia da morte do poeta Eugénio de Andrade, pseudónimo literário do funcionário público José Fontinha, inspector administrativo dos Serviços Médico-Sociais desde 1947. Cunhalfaz afinal parte do mistério de Portugal, deste paradoxo de continuarmos povo, depois de tantos séculos de inquisitorialismo, revolucionarismo e guerra civil ideológica, a que não faltaram as aparições de Fátima e os sucedâneos religiosos da Festa do Avante, onde, em vez dos pastorinhos, se fez uso de Catarina Eufémia e dos evangelhos de Lenine. Paz à sua alma!

Jun 13

Governança sem governo. Pilotagem automática

Perante os dramas do défice e as incertezas do rumo europeu, os nossos donos do poder começam agora a reparar que a massa do povo vai ganhando consciência do vazio político que recobria a pilotagem automática desta governança sem governo, plena de falsos “amanhãs que cantam”, que nos tem marcado na época pós-revolucionária. Soarismo e cavaquismo, tal como os seus frustrados sucedêneos, do guterrismo ao barrosismo-santanismo, apenas foram ilusionismos que conseguiram aguentar-se em tempos de vacas gordas, mas que agora já se vislumbram como solenes nadas, quando a verdade nua e crua da factura nos é apresentada e, mais uma vez, ameaça ser paga pelos justos cumpridores, mas não pelos habituais pecadores da fuga ao fisco. Afinal, os sábios avisos de quem nos aconselhava a vivermos com aquilo que temos e produzimos deviam ter sido seguidos. Nunca deveríamos ter caído na tentação rotativista de dividir o bem e o mal entre o PS e o PSD, sucessivamente, com cansativas acusações recíprocas desses irmãos-inimigos, cada um a dizer que o outro é que era pesada herança da breve tanga. Porque, entretidos nos meandros desse mais do mesmo, ficámos assim algemados a um vazio de estratégia nacional, dado que o supremo valor passou a ser o impulso externo que nos vinha das encruzilhadas europeias. Até chegámos ao presente paradoxo de podermos ter mais um referendo condenado ao fracasso. Com efeito, pedem-nos que sufraguemos um nado-morto, confundindo esse cadáver apenas adiado com o ideal europeu. Aliás, se a nossa classe política dominante prosseguir numa opção que, de um momento para o outro, pode ser reduzida a pó, pelo conjuntural de uma cimeira europeia, ainda maior será o desnorte daqueles comandantes que parecem satisfeitos com a circunstância de se assumirem como simples potência secundária, face ao directório daqueles grandes que se proclamam como a locomotiva de uma geometria variável.