Jun 12

Esta hipocrisia que nos invadiu por dentro…

Todos os regimes portugueses, quando começam a envelhecer e a apodrecer por dentro, tratam de manter, muito orgulhosamente sós, certos lugares de reservado direito de admissão no primeiro banco de um qualquer cerimonial com transmissão no telejornal, conforme as definições constantes do livro de estilo de um qualquer curso de formação acelerada, destinado ao aperfeiçoamento oligárquico dos funcionários das relações públicas e do protocolo do estadão. Por isso é que por aí abunda inúmera literatura de justificação que procura perpetuar o hierarquismo balofo do “jet set”.

 

Ao mesmo tempo, a gente graudamente engordada pelos aparelhos do sistema, bem instalada na garupa do cavalo do poder, vai alimentando uma ficção quase telenovelesca sobre as mudanças de regime, onde até não falta a própria visão aristocretina de certo elitismo de gente “bem” de extrema-esquerda que, continuando a circular pelas capitaleiras alfurjas do “radical-chic”, não deixa de procurar implantação entre os miméticos capitaleiros portuenses, mesmo quando recorre ao exótico de uma qualquer pronúncia do Norte, ou ao sotaque lentícola de um qualquer profe coimbrês.

 

 

 

Poucos têm a coragem de denunciar esta hipocrisia instalada que nos invadiu por dentro, muito especialmente as habituais posturas da arrogância intelectualóide, como se o país que pensa tivesse todo ele que usar as palas que costumavam marcar a pose dos que na minha terra se assumiam como os senhores doutores, os tais asininos carregados de livros que por aí escoiceiam. Como se a direita fossem os filhos-famílais da gente fidalgota que costuma dar muitas voltas pela estranja à procura de um qualquer canudo que os superiorize aos plebeus que se ficam pelas pobres escolas públicas lusitanas.

 

Por isso é que hoje gazetei a um desses cerimoniais do estadão, onde costumam espanejar o veludo vistoso das honrarias os muitos manequins da praça, trocando a conversa da diplomacia do croquete com essas majestades que, de vez em quando, descem de suas alturas para trocar dois dedos de conversa com as notabilidades das nossas cortes institucionais, que se se costumam distanciar da planície unidimensional onde continua a diluir-se o zé povinho, dos bate-palmas e desempregados.

Jun 12

Para um gonçalvista, a democracia não era compatível com a plena liberdade política

Para uma análise objectiva do gonçalvismo, basta consultarmos as cerca de quinhentas páginas dos “Discursos, conferências de imprensa, entrevistas de Vasco Gonçalves”, editadas por Augusto Paulo da Gama, com um esclarecedor prefácio do meu antigo professor de finanças públicas, José Joaquim Teixeira Ribeiro, o vice-primeiro ministro do patético V Governo Provisório que, por acaso, no actual portal do governo, está trocado com o VI, pondo Pinheiro de Azevedo em lugar de Vasco Gonçalves. Com efeito, o meu querido professor, reitor da Universidade de Coimbra com o 25 de Abril de 1974, e digo-o sem qualquer sarcasmo, disse, sem peias do gonçalvismo o seguinte: “a democracia, como se sabe, não é compatível com a plena liberdade política. Não o é a democracia formal, pois não pode consentir em actividades ou movimentos antidemocráticos que a ponham em perigo. Mas ainda menos compatível com a plena liberdade política é a democracia socialista, uma vez que não pode consentir nem em movimentos antidemocráticos, como a democracia formal, nem em movimentos anti-socialistas que ponham em risco a construção do socialismo”. Julgo que esta confissão é manifesta do que tentou ser o marxismo-gonçalvista lusitano: uma ditadura visando o que julgava ser os amanhãs que cantam. Até porque, continuando a citar Teixeira Ribeiro, “uma revolução…não pode ficar parada, tem de avançar ou recuar”. Felizmente que a fizemos recuar, exigindo-lhe que respeitasse os resultados eleitorais de 25 de Abril de 1975. Gonçalves, agora dito idealista por Vital Moreira, quando ambos eram, na altura consequentes adeptos do materialismo dialéctico e serviam, muito patrioticamente, o bloco soviético, em plena guerra fria, não foi, felizmente o nosso Trotski, o nosso Lenine, ou o nosso Fidel, teve, pelo menos a vantagem de, graças aos respectivos erros, permitir que, rapidamente e sem a força da guerra civil, lancetássemos o tumor do pré-totalitarismo que ensaiava. Ao que consta, até Teixeira Ribeiro acabou por abandonar essas ilusões de aceleração revolucionária, tal como antes tinha abandonado os entusiasmos que tinha manifestado pelo fascismo mussoliniano, quando nos anos trinta editava as suas “Lições de Direito Corporativo”. Aliás, se aceito que Vasco possa ter sido boa pessoa, não duvido da grandeza moral de Teixeira Ribeiro, homem bom e grande professor, de quem guardo excelentes recordações, mesmo em confronto ideológico. Mas o que não me impede de sublinhar os erros ideológicos e as tragédias a que nos poderiam conduzir as ideias que professava. Por isso, continuarei sempre a proclamar: revolução, nunca mais! Nem que seja uma revolução ao contrário! Os escritos vasquistas não passam de uma série de banalidades de “agitprop”, revelando, contudo, o perigo que ele representava, quando apelava para a “vigilância popular” de um pidismo vermelho e neo-inquisitorial, pleno de cláusulas gerais que inventavam adversários que, rapidamente, qualificava como uma “minoria de criminosos”, “um bando de salteadores”, porque “os nossos verdadeiros inimigos são a reacção e os fascistas”, com vivas às “massas trabalhadoras” e às “forças progressistas”. São também interessantes as inúmeras entrevistas dadas a jornalistas soviéticos, jugoslavos, húngaros e romenos. A melhor prova do falhanço do gonçalvismo foi a nobreza e a tolerância com que os anti-revolucionários da democracia pluralista, ocidental e burguesa, vencedora do 25 de Novembro de 1975, o trataram. Deixaram-no tão à solta que o balão de demagogia que representava se esvaziou quase de um dia para o outro. Até os cunha listas não lhe dedicaram adequada hagiografia.

Jun 12

O D. Sebastião científico foi o melhor aliado de Salazar

Para ser politicamente incorrecto e tentar fugir aos tradicionais ódios de quem sempre fui distante adversário, apetece dizer que graças ao protagonismo de Álvaro Cunhale do PCP no movimento unitário antisfascista de 1945, os aliados ocidentais, vitoriosos da guerra contra o nazi-fascismo, não favoreceram um movimento visando o afastamento de Salazar no pós-guerra. Basta recordar que nesses tempos, o próprio Mário Soares era um jovem colaborador desta forma portuguesa de servir o estalinismo. Deste modo, foi pela existência do profissionalismo revolucionário de Cunhalque o salazarismo conseguiu perpetuar-se e até receber o privilégio de fundador da OCDE, da NATO e da EFTA. Até poderemos acrescentar que a queda do Estado Novo só foi admitida depois da emergência da extrema-esquerda, a partir da cisão maoísta de Francisco Martins Rodrigues nos anos sessenta, o tal factor revolucionário imprevisto que o cunha lismo não conseguiu controlar e que constituiu, talvez, a principal alavanca que permitiu a emergência de Mário Soares e de um socialismo democrático, aliado do modelo ocidental de democracia. O tal esquerdismo, dito doença infantil do comunismo, gerando uma pluralidade de albaneses e chinocas em ritmo lusitano, da OCMLP ao MRPP, habilmente impulsionado pela CIA, desmantelou a hieraraquia do centralismo democrático, tão laboriosamente construída pelo ex-camarada Daniel. O inteligente, sedutor e cruel revolucionário profissional, para utilizarmos os justos adjectivos com que hoje foi brindado por uma sua criatura, a deputada Zita Seabra, agora ao serviço dos laranjas, não conseguiu assim lançar as bases daquilo que chegou a constitucionalizar como construção do socialismo, antes de muitos antigos cunha listas se ilusionarem com outros construtivismos, como o dos eurocratas, para que todos fôssemos meros cidadãos em construção, peças de um processo histórico, segundo o qual seria um certo caixilho ideológico dito história que construiria o homem. Felizmente, a história acaba por ser uma co-criação de homens livres, onde os indivíduos podem erguer a mesma história, ainda que não saibam que história vão fazendo. O paradoxo cunha lista está na circunstância de só poder haver colectivismos, como o pêcêpista, quando emergem voluntarismos indidividualistas, como os de Cunhal, o tal revolucionário profissional que, muito organizadamente, através de um vanguardismo hierárquico, dito centralismo democrático, obedece à rigidez do aço, com mão de ferro, tentando quebrar a força normativa dos factos. Afinal, aquilo que Guerra Junqueiro tinha profetizado em plena I República como a inevitável chegada de um D. Sebastião científico, acabou por configurar-se como a foice e o martelo da personificação de Manuel Tiago, que foi tão abstracto que, até pelo desenho, tentou criar um povo que nunca existiu, com a beleza trágica de camponeses e operários que só no delírio ideológico tiveram realidade. E não é por acaso que o passamento desse actor político ocorreu no pleno momento em que a Avenida da Liberdade lisboeta vivia a emoção das marchas ditas populares do Santo Antoninho, essa tradição inventada pelo salazarismo em 1934, no preciso ano em que também era inaugurada a estátua do marquês de Pombal, já em pleno Estado Novo, com a Maçonaria do Grande Oriente Lusitano, na véspera de ser extinta, ainda aparecer numa cerimónia oficial, ao lado de Duarte Pacheco e Linhares de Lima, os últimos representantes da ala republicana do 28 de Maio que Salazar tão habilmente manipulou.