Mais um dia que vem nascendo, mais uma folha de calendário, mais um pedaço de passado que leio no meu breviário das efemérides: em 1958, nesta data, o regime do velho Estado que se dizia novo assinava a sua certidão de óbito em termos de legitimidade, com a realização das últimas eleições presidenciais por sufrágio universal e directo. Porque a oposição foi impedida de fiscalizar as mesas de voto. Porque o Supremo Tribunal de Justiça até fingiu proclamar os resultados do sufrágio: 75% para Tomás, 23% para Delgado… Porque Salazar há-de desabafar para colaboradores: se a campanha de Delgado se tivesse prolongado por mais um ou dois meses, ele tinha ganho as eleições. Ele ganhou mesmo as eleições. Porque gerou um golpe de Estado consticional, cuja concretização foi, contudo, adiada para o ano de 1974.
O escritor Ferreira de Castro, bem qualificava o modelo da salazarquia, ao dizer que o regime do Estado Novo é um permanente inimigo da inteligência nacional… as ditaduras, por muito que durem, são um regime sem futuro. Anote-se! Basta recordar que, no ano seguinte, se dava a Revolta da Sé e surgia o exílio de D. António Ferreira Gomes. Já não bastava comprarem os maravilhas com avenças, para os fazerem, pouco depois, subsecretários e ministros, só porque se assemelhavam a Kennedy e diziam pensar como Kissinger, mesmo que ainda continuem a navegar nas águas salobras da decadência, apoiando e conspirando, nos salamaleques de salão, cujos ácaros nos causam alergias.
É por isso que prefiro recordar que ontem ao fim da tarde se deu o acaso procurado de um encontro de gente de blogues, a propósito do lançamento do livro de um cão com pulgas, com reportagem do jumento, do bunker, do tomar partido, do pululu e do macroscópio, onde coube a este gavião fingir que sabia jogar às cartas, para todos homenagearem uma autora que se confessou discípula de mestre Agostinho, na presença do ofício diário. Porque a Fátima, ao efabular a sua verdade, ao permitir o distanciamento de escrever, quebrou, uma a uma, as cordas que a ligavam a uma realidade que utilizou como pretexto para fazer uma viagem pela memória, por essa terra de ninguém onde o outro, que é o leitor, pode reflectir sobre aquilo que na verdade somos. Deu ao romance o nome de Judas Iscariotes, o tal que, auxiliando o outro à ressurreição, acabou, a posteriori, condenado pelos aparelhos de poder que se auto-santificam.
Estou, evidentemente, a falar do romance São Judas Iscariotes que a nova editorial Cosmos lançou e que, autora e editor, me deram a honra de apresentar, para poder fazer um apelo a certo conceito cósmico de pátria, onde se escreve a dúvida existencial com brutais palavras de todos os dias, onde se viaja pela complexidade da memória, com a angústia criativa de um vazio de sistema salvífico, fazendo muitas perguntas sem a ilusão de poder haver decretinas respostas, ou interpretações autênticas, vindas de fora para dentro, ou de cima para baixo. Ontem há-de ser amanhã. Continuamos a ser o sempre.