Hoje ainda não consegui arranjar tema para um postal de homenagem a este regime. Julgo que basta ter colocado, há pouco, como imagem do postal de ontem, a firmeza jota que agora a encima. Porque imagens como estas há muitas, mesmo sem saias. Eu, por exemplo, sou um dos que sofre na pele do quotidiano o efeito de inúmeros testemunhos de senhoras directoras e de senhores directores deste género de degenerescência cívica. Apenas digo que é pior experimentá-los do que julgá-los, mas nem por isso deixo de aqui julgá-los, para que outros não tenham que experimentá-los. Por exemplo, ao contrário de muitos frequentadores da Internet, já há muito que não utilizo o computador que possuo no serviço público, tanto para visitar a rede como para guardar arquivos de investigação científica. Não tenho confiança na confidencialidade dos dados. O que me foi até garantido por um anterior, e actual, director diante de testemunhas. E que me leva a reforçar a ideia de que em muitos segmentos da administração pública, esta não é imparcial nem sequer pessoa de bem. Porque a lei é interpretada de uma maneira favorável para os amigos da lista, e de forma repulsiva para todos os outros que não têm os favores do abstracto chefe que divide o mundo entre os bestiais e as bestas, onde são bestiais os “yes, minister” e bestas, os que lhe dizem “não”, mesmo quando, antes, lhe disseram “sim”, dado que o chefe confunde o bem a instituição com a personalização do poder. Aliás, o chefe, ainda há uns tempos, enviava um “sms” a várias pessoas de uma certa categoria, contendo excertos de um documento difamatório relativamente a um colega, excluindo cirurgicamente outros, ao bom estilo dos modelos inquisitoriais, como se este regime não fosse um Estado de Direito, sujeito a uma Constituição, onde os próprios ministros não passam de um “servus ministerialis”, onde o “ministerium”, a função, ou o ofício são o tal bem comum, onde nenhuma facção tem o monopólio da interpretação autêntica. O chefe não passa de um funcionário, de um oficial, de um ministro ou de um vigário. Coisa que até se aprende num curso de teologia, mesmo que seja em latim. Ai do nosso querido regime quando a lógica burocrática se deixa enredar nas bufarias impressas em revistas coloridas, à boa maneira das leis promovidas pelo deputado Santos Cabral. Ai do nosso querido regime quando docentes universitários dão o nome de autoria a artigos ditos jornalísticos que reproduzem campanhas de seitas fundamentalistas, à boa maneira dos moscas do Intendente e dos bufos de Agostinho Lourenço. Especialmente quando todos querem esquecer que a polícia política do salazarismo foi montada pelos mesmos polícias secretos que a República democrática organizou, na sua fase de decadência, invocando os atentados da Legião Vermelha. Até não me esqueço que a instituição técnica da Pide, de 1945, teve a complacência colaboracionista dos mecanismos policiescos de algumas democracias ocidentais, em nome da nascente teoria do Estado de Segurança Nacional. Ai do nosso querido regime se, em nome da abstracção burocrática, regressa o ambiente pós-totalitário que Milan Kundera bem expressou na “Insustentável Leveza do Ser”. Se os mecanismos do Estado de Direito forem instrumentalizados para vindictas feudais e partidocráticas, com a complacência do oportunismo carreirístico do salve-se quem puder, a democracia entra definitivamente no crepúsculo.