Fev 24

Líbia, ou o vazio de república universal

Entre a Cirenaica e a Tripolitânia, o deserto aqui tão perto. Já não há mouro na costa, apenas exportação de consultadoria em betão e importação do petróleo, no carrito, no esquentador, ou no fogão. Ao pé dos bombardeamentos aéreos do despotismo, os camelos de Mubarak até parecem cordeirinhos… Quanto mais intensa for esta repressão dos fósseis do costume, mais sangrenta será a Viradeira, eventualmente marcada por dinâmicas tribais e teocráticas. Ou de como quem com ferro mata, com ferro pode morrer… Deste despotismo iluminado, que se dizia terceira via e livro verde, quantos intelectuais lusitanos não houve que com ele confundiram a atracção pelo exótico a que chamam a utopia… Desde os adeptos nacionais-revolucionários aos que foram a teatro comicieiro no anfiteatro da Reitoria da Universidade de Lisboa, de tudo se viu. “Vemos, ouvimos e lemos”, mas continuamos a “ignorar”… Até os pretensos omniscientes não esperavam “tanta volatilidade no mundo árabe”. Mas não faltam os que acreditam nestas manifestações de revolução contra a revolução, para que o pensamento científico possa derrubar os “dogmas religiosos” (relatos de um debate radiofónico de há pouco). Os ilustres consultores das multinacionais do petróleo, do betão e da informática, os que nunca se indignaram com proibições de cultos e minorias votadas ao ostracismo, deveriam ter reparado na impossibilidade de exportações de conceitos abastractos sobre democracia, autoritarismo e totalitarismo, que os manuais de transicionologia até para nós continuam a traduzir em calão… É uma estupidez pensar que é possível exportar o nosso Estado dito moderno e racional-normativo. Apenas por lá ficaram segmentos de Estado-Aparelho de poder (burocrático, militar e de coordenação empresarial) sem Estado-Comunidade. Ficaram os principados da personalização do poder, do clientelismo e da corrupção, numa sucessão de volatilidades fósseis… Os exagerados custos de consultadoria nessas exportações oportunistas, nunca compreenderam o segmento do chamado risco político. Mandaram-no prrencher à pressa pelos novos licenciados em engenharia política que acham essa coisa da legitimidade comunitária mero engodo… Todas as revoluções são pós-revolucionárias, sobretudo quando a transmissão dos poderes dos queridos líderes cai no mero hereditário e clientelar. Os brilhantes assessores e comedores da nossa estúpida eficácia contratual foram além de suas chinelas analíticas… Todos continuamos com as nossas cabecinhas enfiadas nas areias de um deserto de ideias, onde apenas emitem opinião os conhecidos cobradores de comissões, percentagens e subsídios que sempre considerarm os violentados como meros danos colaterais… A dita volatilidade do mundo árabe tem ligação directa com o nosso potencial regresso às vacas magras e ao consequente risco de evaporação das vacas sagradas de certa direita dos interesses e das suas alianças com os artistas de circo da pretensa esquerda moderna… Bastou que o vento das areias entupisse uma estabilidade dita institucional, feita de fidelidade tribal e verniz teocrático, para que a ditadura dos factos começasse a ameaçar a tradicional banha da cobra que marca o ritmo da nossa informação espectáculo, com os nossos telejornais fazendo reportagens em directo de mentirosos fins da história. Os velhos paradigmas dominantes que permitiam a facturação petrolífera e em materiais de segurança parece não aguentar o desabar da tenda e das esporádicas visitas… Quando os ditos realistas de catecismo proclamam que fora deles só há as sombras do normativismo e do idealismo, estão a vender ideologia disfarçada de cientificismo…. Quem disse que os teóricos o podem ser sem experimentação? Outro argumento da habitual adjectivação diabolizante dos pseudo-realistas, para que se eliminem os dissidentes, incluindo aqueles que sabem de navegação, desse saber de experiência feito, só porque lhes dizem que não.  E há os que só são teóricos depois de serem práticos… Voltem ao velho, mas não antiquado, paradigma de perspectivarmos o universal através da diferença. O que aí vem é aquele médio prazo de um diálogo onde vão participar os fiéis das grandes religiões universais e das tradicionais forças morais. Não haverá viragens históricas de telejornais em cimeiras intergovernamentais. Espero que algumas das principais forças da minha civilização, nomeadamente os norte-americanos, aproveitem as boas relações provocadas por inimigos comuns, nomeadamente com a Rússia, para compreenderem o que se passa em democracias islâmicas como a Turquia ou a Indonésia. E que a Europa tire rapidamente a lição das circunstâncias. Aconselho a todos que estudem a biografia de dois ocidentais convertidos ao islamismo: um, René Guenon (1886-1951); o outro, Roger Garaudy (n. 1913). Grande parte da geração que assumiu o poder em Portugal, neste regime, bebeu seus mitos neste ex-comunista francês e ex-patriarca dos cristãos ditos progressistas da nossa praça. Sobretudo a “Biographie Du XXe Siècle”, Paris, Tougui, 1985… Outro conselho: ler o Livro Verde do Coronel que bombardeia o seu próprio povo. E reparar como este enlatado catecismo não passa de um subproduto de nossas nostalgias revolucionárias, transformadas no definitivo de um PREC posto em comprimido Eu sou contra essa das transições…Qualquer mudança não é regresso ao pretenso caminho de um processo histórico que outros nos escreveram, com os habituais guiões encomendados. Não é a história que faz o homem, são os homens que  fazem a história, mesmo sem saberem que história vão escrevendo. A história não é o resultado das intenções de alguns nem de planeamentismos, sejam económicos, politiqueiros ou securitários. O pior da história real do século XX foram esses ditos das boas intenções de que o inferno da realidade está cheio. Só há mudança e até progresso na epigénese, não na distribuição de antigos factores de poderes, mas na criação mobilizadora de novos fins políticos mobilizadores. Eis meus comprimidos epistemológicos, onde sigo tipos como Tocqueville, Hayek e Etzioni, os tais que já não citar porque falam por mim dentro. Falem dos homens como eles realmente são e das leis como elas devem realmente ser (conselho de Rousseau, no começo do Contrato Social)… Kadafi é uma das caricaturas de ocidentalismos que abrasaram o mundo. Tal como as revoluções do marxismo em comprimido que, no sol posto, instrumentalizaram os retratos de Marx, Engels e Lenine, para que um Estado Terrorista de exportação fabricasse o Terror, esmagasse as Vendeias internas e ocupasse as “républiques soeurs”, chamando libertação à chacina! O processo kadafiano é clássico. Primeiro, a libertação pela via de um golpe militar da federação de médias patentes. Depois, a junção da personificação verticalista do poder, com o propagandismo dos comités populares de base. No fim, a invocação de um terceira via de um qualquer “ismo” original. Pelo caminho dos quarenta anos, Kadafi transformou o terrorismo interno, claramente inquisitorial, num modelo de exportação selectiva, com avanços, recuos e sucessivas chacinas. Um tirano clássico, pouco arabesco, mas com transmissões directas pela TV do respectivo teatro de Estado, de tenda armada… Felizmente não “libertou” os árabes nem África, apenas negociou com uma Europa berlusconizada! Reconheçamos que a ocidentalização globalista com que quisemos conquistar o mundo depois das descolonizações falhou. Tanto na “marxização”, aparentemente eficaz com os seus catecismos e canhões, como pelo “doux commerce”, com os seus ministros das finanças em “tratamentos de choque” à merceeiro. Tolstoi, através de Gandhi, ou o diálogo de civilizações à João Paulo II, são bem mais credíveis, embora de médio prazo. Outro exemplo a assinalar está no referido René Guenon, quando, depois de pesquisar o que chamou de tradicionalismo, decidiu diluir-se no outro e misturar a respectiva via iniciática com o islamismo, no Egipto onde morreu, e no preciso ano em que eu nasci, representando toda uma geração de ocidentais que, indo às raízes, procuraram o exótico dos orientalismos. Os encontros de Assis podem relembrar-nos a lenda de São Francisco, quando quis converter o sultão no Egipto. Este, disfarçado, revelou-se e disse admirá-lo, até porque lhe fazia lembrar os franciscanos do Islão, os chamados “sufis”, até pelos hábitos, embora estes nem sempre façam os monges… O universalismo ocidentalista não ganha nada com a emissão de generalidades e abstracções da habitual engenharia de conceitos que pretende unidimensionalizar as identidades. O universal só se atinge respeitando as diferenças, nunca com as conversões do Palácio dos Estaus, baptizando à força magotes de judeus que, depois, foram condenados a cristãos-novos, hipocrisia que não foi boa para as duas comunidades. O multiculturalismo à londrina e o assimilacionismo à francesa, tanto se assemelham às nossas antigas judiarias e mourarias, como ao posterior inquisitorialismo de caça aos hereges. Vale mais integrar a Turquia na União Europeia ou admitir o crioulo como língua oficial portuguesa. Só há arremedos de república universal quando os altos desígnios de salvação da humanidade coincidem episodicamente com os interesses de uma das grandes potências, a quem convém fingir-se de polícia do universo. As frases que hão-de salvar a humanidade já estão todas escritas. Falta apenas salvar a humanidade, como dizia Almada Negreiros. A indignação retórica da comunidade internacional face a eventuais crimes contra a humanidade, nomeadamente o democídio, apenas demonstra como a justiça sem força é impotente, depois de se desperdiçarem forças nas areias de outros desertos. Rezemos para que a metodologia diplomática e a pressão multilateral metam medo ao tirano. Não quero ter vergonha do meu próprio tempo. A Líbia está, mais ou menos, no meridiano da “Mitteleuropa” e quase no paralelo da Madeira, entre o Mediterrâneo e o deserto. Isto é, apesar de já ser africana, do resto do mundo tem de ser perspectivada como o quase Ocidente europeu, mesmo diante de Roma. Isto é, é tudo menos periferia… Politicamente, Kadafi não passa de um subproduto do nosso colonialismo de ideias, principalmente da nostalgia da revolução perdida, como alguns dos nossos “maitres à penser” tentaram exportar para um qualquer lugar exótico de estranhas gentes, onde o poderiam exportar sem sofrerem as consequências… Há por aí muitos que continuam, à boa maneira dos “philosophes”, procurando um lugar de conselheiros de déspotas que os não podem unidimensionalizar. Daí que proponham revoluções em comprimido, como se os catecismos pudessem ser livros de receitas de outras carnes para canhão… Há certas ideias de vulgata que acabam por ser mortíferas, quando geram laboratórios vivos de genocídios e democídios, mesmo que invoquem a impunidade revolucionária das boas intenções e a literatura de justificação das ideologias… Todos os Estados que não são produto de uma cultura enraizada trazem consigo a semente do terrorismo, quando a respeitabilidade internacional confunde a segurança com a paz dos cemitérios e um qualquer monopólio da violência, mesmo que não seja legítima…

Fev 24

As nossas direitas e as nossas esquerdas têm os armários cheios de esqueletos

As nossas direitas e as nossas esquerdas têm os armários cheios de esqueletos, pelo que lamento as cenas do nosso parlamento de hoje, perdidas em jogos florais. Isto é, continuamos a ser enganados por nominalismos, plenos daqueles fantasmas e preconceitos que tanto santificam como diabolizam situações que nos continuam a falsificar… A tirania não é de direita nem de esquerda. É uma besta a abater. E o nosso regime tem pelo menos a legitimidade de poder exigir que outros façam o que temos praticado no domínio dos direitos exigidos pela dignidade da pessoa humana. Kadafi não é dos etéreos da utopia, para ser tratado como uma hipótese académica, aquilo que no ensino do direito se dizem “casos práticos”. E importa recordar que o maquiavelismo, além de uma má moral, também é uma péssima política no médio prazo, mesmo quando pareça ter razão no curto prazo do negocismo e da diplomacia. E pior ainda quando se dedilham palavras como carisma, socialismo ou nacionalismo…