O elemento mais marcante do salazarismo

O elemento mais marcante do salazarismo sempre foi a hipocrisia. Pior: o paradoxo de se fazer um discurso contra a hipocrisia a fim de se fazer ainda mais hipocrisia. Isto é, teorizando-se a necessidade da autenticidade, atingiu-se o exacto contrário daquilo que se foi proclamando.  E tudo se disfarçava com as mãos papudas do salamaleque de salão, com a cadeirinha de coiro preto, sacanamente posta para o tolo do gabiru julgar que o assassinato podia ser gratificante. Sempre na solenidade ritual de gabinetes grandiosos, onde a luz esguia dos candelabros, o óleo frio dos quadros épicos e o retorcido das escrivaninhas, nos parecia transportar para a delícia cultual dos livros de carneira cheios de bicho, cheirando ao mofo dos inquisidores da treta. O chefe supremo tem sempre as mãos higienicamente desinfectadas, porque ele apenas é mais um desses honestos que, infelizmente, tem que gerir uma plebe de intermediários desonestos, desde a bufaria dos serviçais que esperam ser promovidos, à minoria dos jagunços violentistas, numa rede que só é eficaz se o vértice continuar a parecer o exacto contrário daquilo que o conjunto é, na realidade.   O nosso yes, minister não é apenas uma sátira para série humorística, dado que ainda transporta os punhais assassinos que nos violaram, nesses colossais edifícios de gigantescas colunas amedrontadoras, nesses longos átrios que poderiam servir para cadaverosas exéquias, onde ameaça sempre soprar o gélido vento da morte, enquanto neles vão desaguando os passos perdidos de labirínticos corredores que sempre nos fazem lembrar hospitais-prisões. E nesse arquitectónico feito pelos engenheiros do absolutismo, a solidão do indivíduo, que resiste em suas crenças, quase se transforma em medos enregelantes. Sobretudo, em agrestes noites de invernia, quando as diluídas luzes de néon contrastam com as saudades do diurno e luminoso sol, dessa memória de força que nos vai despertando a vontade de fugirmos para bem longe desta prisão dos tempos cronometrados. Porque a liberdade e o movimento estão lá fora, rimam com rua, rimam com povo, com esse povo proibido, que continuam a comprimir em filas de autocarro, em ditaduras de relógios de ponto, horas para entrar, horas para sair, horas para almoçar, segundo o ritmo da burocracia cinzenta, planificada, avaliadora. Por isso apetece peregrinar pelos exílios que podem ser e sempre estão à nossa espera. Há desafios que só podem ter daquelas respostas imediatas assentes na intuição que nasce da honra e apenas é comandada pelo lume da profecia, mas com um discurso daqueles que têm o sangue frio dos que sabem manejar a racionalidade em pleno olho do furacão. Porque é em plena crise, acompanhando o movimento das circunstâncias, que podemos evitar ser arrastados pela tempestade.  Não para domarmos os ciclones, mas para podermos continuar a domar-nos a nós mesmos, garantindo a resistência da nossa autonomia e tentando continuar a viver como a nós mesmos nos pensamos. Se não somos superiores às forças desabridas que outros provocam, nem por isso nos temos que juntar aos pretensos vencedores, nesse ritmo dos cataventos que apenas servem para registar o que os outros fazem, donde vêm, para onde vão e por onde passam. Nossas mãos, serenamente livres, porque nada devem a quem não o merece, podem continuar a acalentar o prazer da descoberta, acariciar cordas do navio que nos vai levar longe daqui, para o outro lado de um mar que há-de ser.

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