Jan 11

Entrevista a Pessoal (Ana Leonor Martins)

11.1.06

Entrevista concedida à revista “Pessoal” de Janeiro

 

 

 

«Cinco anos do capítulo final de umas glórias memoriosas notáveis», «uma década de neo-cavaquismo» protagonizada por «uma espécie de tio grisalho dinâmico» ou o poeta de «discursos empolgantes» mas com «pés de barro». Segundo José Adelino Maltez, professor universitário, é este o trio do qual sairá o próximo presidente da República Portuguesa. Tudo «glórias do passado» que fazem com que, a partir do próximo dia 22 de Janeiro, se vire o disco para tocar o mesmo.Por Ana Leonor Martins

 

Com as eleições presidenciais à porta, José Adelino Maltez fala de uma pré-campanha que não garantiu a igualdade de oportunidades e de um sistema político-partidocrático e bancoburocrático; de um país «absurdamente centralizado», «fechado» e «controlado por castas capitaleiras» e de uma «democracia conservadora» a precisar de uma operação de ‘lifting’, de elites não competitivas e de candidatos «sistémicos e conservadores que representam o medo da mudança»; de debates que revelam «desvios gerontocráticos» e de uma «bipolarização estúpida entre esquerda e direita». No fundo, fala de um país a precisar urgentemente de renovação.

 

[Pessoal] A um mês das eleições presidenciais, como tem visto a pré-campanha?

[José Adelino Maltez] Na pré-campanha houve uma espécie de regresso à política. Estávamos numa situação adormecida e estas eleições vieram despertar o gosto pela debate político, num país onde o sistema democrático enfrenta dois desafios negativos: a corrupção – os índices internacionais dizem que somos o país mais corrupto da União Europeia – e o indiferentismo. A cidadania é um belo conceito, mas está desangrada, e a democracia representativa em crise…

 

A que níveis se verifica a corrupção de que fala?

A corrupção é a compra do poder e exerce-se em pequenos nadas. O oceano da corrupção em Portugal vem mais do pato bravo na relação com o autarca do que propriamente do grande empresário da banca na relação com o ministro. Para chegar ao poder, os líderes do Partido Socialista (PS) e do Partido Social Democrata (PSD) têm de negociar com os seus autarcas e com os seus caciques. Os partidos estão minados por estes 30 anos de cedência aos micro-poderes da corrupção que gerou uma enorme rede de falta de autenticidade do poder.

 

Será por isso que se verifica o tal indiferentismo?

Não só. É um problema de todas as democracias quando, como esta, envelhecem. Esta senhora está a dez anos de atingir o tempo de duração do governo de Salazar e tem o dobro do tempo de vida da Primeira República. Precisa de uma operação de ‘lifting’. Todas as democracias europeias do pós-guerra, neste ciclo dos 30 anos, tiveram um sobressalto criativo, uma recriação. A França com o De Gaulle, Itália com a «Operação Mãos Limpas»… A nossa democracia é muito conservadora. As presidenciais revelaram um grande atavismo. Voltámos atrás. Os candidatos que disputam a chefia de Estado são tudo glórias do passado, da década de 1980. O que nos oferecem como alternativa é o presidente da República, o primeiro-ministro ou o poeta oficial do regime desse período. Não há renovação. Estes pais da pátria tiveram descendência mas o filho Guterres fugiu por causa do pântano, o filho Barroso foi-se embora e o filho Santana anda por aí.

 

Existirão alternativas credíveis na nossa classe política a essas glórias passadas?

Portugal é o país mais fechado da Europa Ocidental. Menos plural, com menor participação da sociedade civil no Estado. É um regime rigorosamente controlado por castas capitaleiras, da capital, e estático na mobilidade social. Somos um país absurdamente centralizado, com um sistema educativo que perpetua a casta e que não permitiu seleccionar os melhores através de um processo de igualdade de oportunidades. As elites não são competitivas, não há meritocracia. Dois exemplos… No tempo do príncipe regente D. João, as duas grandes figuras do governo eram o visconde da Anadia e o visconde de Balsemão. Curiosamente, os seus descendentes são o Paes do Amaral e o Pinto Balsemão, dois dos principais donos do poder em Portugal. A chamada democratização do regime, nascida nos últimos anos do antigo regime com a mítica reforma Veiga Simão, ainda não produziu efeitos. Só agora começará a surgir uma nova elite.

 

Acha que essas castas vão perder o poder?

Nos últimos 30 anos, houve uma aposta do povão na educação dos seus filhos, uma renovação das universidades e das elites, mas ainda não houve tempo para isso ter consequências na classe política e nos partidos. Pela primeira vez na História, isto que resta de Portugal está prestes a ter uma alteração de fundo. Se quem manda no país não percebe os sinais do tempo, podemos estar à beira de uma explosão, relativamente controlada pela integração europeia e pela globalização. As regras que permitiam que os mesmos vencessem sempre, fossem de esquerda ou de direita, monárquicos ou republicanos, vão-se alterar.

 

E acredita que podemos ter uma surpresa já nestas eleições?

Não, porque optámos pela velhice e por adiar a reforma. Surpresa como? Mais dez anos de neo-cavaquismo? Toda a gente sabe o que é, vira o disco e toca o mesmo. Soares? Mais cinco anos do último capítulo das memórias finais do grande mestre da conversa, como lhe chamou o «Diário de Notícias». Isto é uma mentira. Os partidos não deixam que isto mude. E a partidocracia dominante já não é uma questão puramente doméstica. O doutor Cavaco, o doutor Soares e a região autónoma alegreira são agentes em Portugal das duas principais forças partidárias multinacionais que mandam na Europa – o Partido Popular Europeu e o Partido Socialista Europeu. Estão dependentes dos seus programas.

 

Que consequências práticas é que isso trará?

Um povo transformado em organização estadual como o nosso só pode ser independente se souber navegar nas dependências. E nós não criámos uma forma de gerir bem as dependências resultantes da integração europeia e da globalização. Temos um sistema partidário criado à pressa, tipo pronto-a-vestir, nos primeiros dias de Abril que, curiosamente, é decalcado de ideologias alemãs. É tudo ‘ex-novum’. O autoritarismo salazarista matou as memórias. Isto levou-nos a ter agentes das forças partidárias multinacionais. Somos o país mais social-democrata da Europa e do mundo. Só podemos mudar entre o socialismo democrático e os sociais-democratas. É uma ilusão de mudança.

 

Então, seja qual for o presidente eleito, não haverá grande diferença prática…

O líder governamental do PS começou por ser militante da JSD. Nas declarações que fez de carácter ideológico, tal como Cavaco Silva, disse que era adepto do Bernstein, o inventor da social-democracia do século XX. Os dois são iguaizinhos até no modelo. O Cavaco tem a postura ‘action man’ do Sócrates. É uma espécie de tio grisalho dinâmico. O Soares livrou-se da imagem de padrinho e é uma espécie de avozinho.

 

O que é que as pessoas esperam do presidente da República?

Em primeiro lugar, como Aristóteles dizia, todos os regimes políticos são mistos – democracia no Parlamento, aristocracia técnica no poder judicial e monarquia ao nível da fechadura do ciclo. Os poderes do presidente são limitados. Mas tem autoridade. Isto conforta-nos e dá um equilíbrio bastante interessante ao regime. Não concordo é com a maneira de se jogar dentro do regime. Ninguém denuncia o facto de até agora termos tido debates apenas com os candidatos sistémicos. E se aparecer outro candidato com 7.500 candidaturas? De acordo com a lógica do Estado de Direito ter-se-ia que repetir os todos os debates.

 

Pelo menos Garcia Pereira, à data a que estamos a falar [22 de Dezembro de 2005], já as conseguiu e até apresentou queixa na Alta Autoridade para a Comunicação Social…

O Garcia Pereira faz parte do folclore, mas pode aparecer um cidadão independente e nós, à partida, estamos a dizer que ele não tem igualdade de oportunidades.

 

Isso levanta um problema constitucional…

Levanta um problema gravíssimo, não só constitucional, mas sobretudo de igualdade de oportunidades. Os que têm acesso ao controlo da opinião são os amigos dos donos da televisão. As candidaturas beberam o caldo que os donos do poder comunicacional lhes ofereceram.

 

A este respeito, o editor de política da SIC, Ricardo Costa, disse que já «tinha dado para esse peditório»…Corremos o risco de dizer que isto não é uma democracia, mas uma tele-democracia, ou uma sondajocracia. É um momento de reflexão profunda.

 

Que sentido faz permitir que qualquer cidadão eleitor português, com mais 35 anos, se possa candidatar, se depois as oportunidades não são iguais para todos?

Isso é uma espécie de tranquilizante que normalmente é usado por aqueles que acham que a chefia de Estado tem de ser deste modelo. A diferença entre a forma republicana ou monárquica de chefia de Estado não é grande. No fundo, a figura presidencial é uma espécie de saudade monárquica, de um povo que quer alguém com autoridade mas sem poder. Por outro lado, o sistema político português é partidocrático e bancoburocrático. Há uma ditadura dos partidos, segundo a dominante bancoburocracia, com as influências que tem na comunicação social, que é o quarto poder.

 

O que quer dizer com isso…

Muitas vezes diz-se mal dos jornalistas, mas eles não existem neste processo. São empregados de empresas que controlam o sistema. Conheço o jogo de controlo da comunicação social. Os tais donos do poder, que são tão importantes quanto os próprios partidos, aliados a uma estrutura bancária de um bloco central de interesses, criaram um sistema de intermediação entre o povo e o poder central que está a fazer um desvio oligárquico do regime. Isto faz com que a democracia não tenha total autenticidade.

 

Acha que os cidadãos têm consciência dessa espécie de manipulação?

Claro que têm. A experiência democrática tem demonstrado que em momentos-chave a maioria das pessoas comuns sabe escolher melhor do que as elites, porque tem bom senso. Tento entender os sinais do povo e percebo que há uma revolta que a média prazo vai resultar numa mudança de sistema. Não através de uma revolução, mas de uma reforma. Alguns partidos extremistas são uma espécie de lebres. Estão a antecipar alguma coisa que não vão ser eles a gerir.

 

A crescente implantação do Bloco de Esquerda será disso um sinal?

Não. Isso também é folclore. São os filhos da grande burguesia com fatos finórios. Estou a falar de um partido central, com implantação nacional, que saiba interpretar estes sinais de mudança e que faça uma reforma do sistema.

 

Terão os debates televisivos contribuído para o esclarecimento da opinião pública? Não se tem estado a discutir matérias da competência do primeiro-ministro?

Grande parte dos temas que os moderadores introduziram na discussão, talvez 80%, são programas de governo. Quer Soares, quer Cavaco, revelaram uma grande cobardia ao não discutir os problemas europeus. O debate entre os dois foi uma espécie de luta por uma medalha de honra por ter sido um bom governante no passado.

 

A dada altura discutia-se inclusive quem tinha escrito mais livros, e sobre o quê…

Isso revela um desvio gerontocrático, um pouco de chechezismo dos candidatos. Estão-nos a pedir que os consagremos como grandes figuras e a discutir livros de memórias. Foi ridículo. Pareciam dois vizinhos a discutir qual dos dois tinha o melhor carro. Mas nenhum deles disse que visão tem da Europa ou da globalização, nem falou na Comunidade dos Países de Língua Portuguesa ou referiu o debate sobre o Brasil, a luta contra a desertificação do interior ou o sentido atlântico da existência. Nenhum deles teve um sonho universal de Portugal… Houve um excesso de micro-política, muita discussão de poderes e pouca discussão de autoridade. Nenhum deles assumiu a macro-política presidencial.

 

Acredita que um «ilustre desconhecido» teria hipótese de ganhar as eleições?

Se aparecesse um Delgado que exprimisse a voz profunda do povo, mobilizava imediatamente as pessoas adormecidas.

 

Mas os candidatos que têm as máquinas partidárias por trás terão mais hipóteses… Ou não?

O Manuel Alegre tentou contrariar isso. Depois verificou-se que era uma espécie de ‘soufflé’. Esvaziou no debate. Mas o impulso inicial foi esse. Em 1975, Mário Soares exprimiu essa voz e tornou-se um líder respeitado. Os grandes líderes que tivemos foram os homens para as circunstâncias. O Sá Carneiro, o Eanes…

 

Se Alegre ficar à frente de Soares, acha que a imagem do PS ficará afectada?

A importância da figura presidencial vai além das questões internas domésticas dos partidos. Manuel Alegre tem alguma qualidade como político, mas talvez tenha criado expectativas em demasia. Notou-se alguns pés de barro.

 

Perdeu nos debates?

Não tanto nos debates, mas pela falta de mobilização de uma elite que poderia acompanhá-lo neste processo. Acho que houve na pré-campanha eleitoral uma bipolarização estúpida entre esquerda e direita. Qualquer um dos candidatos ditos de esquerda cometeu o erro estúpido de dar de borla o que era a não esquerda a Cavaco Silva. Nunca se faz isto em termos de combate supra-partidário.

 

Nesse sentido, Cavaco Silva foi mais inteligente, não quis Marques Mendes nem Ribeiro e Castro a fazer campanha com ele…

Cavaco Silva fez o que os conselheiros mandaram. Estar calado. Repetiu exactamente a postura de Sócrates, que não disse nada e acabou primeiro-ministro. É a chamada gestão do silêncio. O drama das escolhas políticas e destas presidenciais tem a ver com o facto de o nosso modelo social assentar num centrão mole e difuso, constituído pelos beneficiários do sistema – os reformados, os sindicalistas da UGT, o funcionário público ou o professor universitário que não faz nada… Ou seja, os subsídio-dependentes. São um milhão de eleitores flutuantes que não gosta de reformas. Ora votam PS, ora PSD. É esse eleitorado que Soares e Cavaco estão a disputar. Os dois representam o medo da mudança. São sistémicos e conservadores.

 

Não acha curioso que Cavaco Silva, tão criticado no passado, apareça agora destacado nas sondagens?

As pessoas vão à carteira e lembram-se de que no tempo de Cavaco Silva tinham mais dinheiro. Sabiamente, ele está a fazer apelo a uma lembrança de um tempo melhor. Só que as circunstâncias são outras. Salvo as devidas distâncias, ele é uma espécie de Salazar democrático. Reúne a vantagem da democracia, com a vantagem do mito do prestígio financeiro. Já Mário Soares tem a vantagem de ser um Afonso Costa pachola. O mito do líder do reviralho, simpático, que vai à missa e visita o cardeal. Tentam ser a soma de dois contrários. E nós gostamos, porque estes paradoxos tranquilizam-nos. O que eu pergunto é se nos dão futuro.

 

De que tipo de líder precisamos para ter futuro?

No leilão de políticos disponíveis, não temos nenhum desses. Precisamos de um líder sem medo da aventura e do risco. Uma pessoas que fosse contra o estado de estagnação a que chegámos e que quisesse fazer uma revolução sem sangue. Uma ruptura reformista.

 

E Francisco Louçã e Jerónimo de Sousa?

Nenhum dos candidatos consegue ser reformista em termos de aventura. Jerónimo de Sousa é um comunista simpático e afectivo, uma espécie de cassete animada. Já não come criancinhas ao pequeno-almoço. É um comunista de Abril. Louçã é um trotskista que faria umas excelentes conferências sobre o que teria sido a revolução soviética se em vez de Lenine tivesse vencido o Trotsky. Faz parte da aventura da extrema-esquerda europeia, mas só é novidade cá. É interessante para o folclore, mas nunca podia ser, por exemplo, um Lula ou um Evo Morales.

 

Concluindo, vamos ter mais dez anos do mesmo…

Se ganhar o doutor Soares, vamos ter cinco anos do capítulo final de umas glórias memoriosas notáveis. Se for o doutor Cavaco, eventualmente será uma década de neo-cavaquismo. Se for o doutor Alegre, vai ser uma perda enorme para a literatura, porque vai deixar de ter tempo para escrever livros. Mas pelo menos teríamos discursos empolgantes. O essencial disto tudo é que há uma má relação do povo com o Estado. Aí é que reside o drama da crise portuguesa. O desafio da democracia é reconciliar o povo com o Estado. O mal de Portugal são os instalados. Se houvesse instabilidade estrutural, deixava de haver uma ditadura do PS e do PSD. Faz falta pôr em risco os donos do poder, porque então tinham que revelar que eram bons. E não são necessariamente maus. Sou adepto de alguma balbúrdia criativa e não de ditaduras do ‘status quo’. Não aguentamos muita estabilidade. Mesmo que se cometam erros, é preciso dar alma à política. Um refazer da esperança, sem medo.

Jan 11

Da bajulação ao desencanto, ou de como as placas tectónicas se espreguiçam no banco dito da Josefina

Quando os que eram bajulados sofrem agora, mimadamente, o desencato serôdio dos eternos vingativos, reparo que um russo qualquer, trazido para o pedibola dos águias, disse, numa entrevista concedida a um jornal de Moscovo, que Portugal está atrasado vinte anos, enquanto reparo como são enternecedores dos doutos depoimentos prestados por algumas personalidades militaruscas, catedratais e banqueirais, ungidas pela avença e pelas aposentadorias, à grande frente de defesa do candidato que vai à frente das sondagens, para a presidência deste sistema devorista.

 

Vale-nos que o célebre PSL, sem procurar construir um partido PSL-PP de centro-direita, ainda anda por aí e acaba de anunciar que o tal candidato à entronização cavaqueira poderá ser causador de instabilidade, obrigando os partidos de centro-direita a um papel limitado no futuro.

 

Mais grave é, contudo, a circunstância de socialistas democráticos e sociais-democratas, que são, mais ou menos, oitenta por cento dos que nos têm representado e que em nós têm mandado, nos últimos trinta anos, anunciarem que chegou à falência a criatura assistencial que geraram. Porque os criadores da dita cuja, como autênticos bombeiros-pirómanos, assumem, desde já, o exclusivo dos remédios para a grave doença, prometendo a manutenção daquela estratégia terapêutica que nos conduziu à derrota. O povo vai, de certeza, votar em massa em Cavaco, Alegre e Soares, para que as pensões sejam recebidas, nem que seja em papel de embrulho. Porque nem tudo o que luz é necessariamente aurífero e nem tudo o que é gripe vem necessariamente das galinhas.

 

Até porque a zona de confronto das placas tectónicas, dita Josefina, que fica no mar, a quinhentos quilómetros a oeste do Cabo de São Vicente, continua a espreguiçar-se. Foi apenas mais um bocejo de dois pontos na escala de Mercali, onde o máximo é de doze. E mais não foi do que uma simples réplica, escalrecem-nos sos sismólogos de serviço.

Jan 11

Da insurreição à revolta nacional. Recordando o Ultimatum…

Hoje é o dia em que se desencadeou o “ultimatum” britânico a Portugal no ano de 1890. E nesse ano em que na sequência de tal acto caiu o governo progressista, sobe ao poder o governo regenerador de António Serpa, já com o apoio da facção de Barjona de Freitas, em tempos de finis patriae, conforme o livro de revolta de Guerra Junqueiro, pouco antes da morte de Camilo Castelo Branco. Nesse mesmo ano, já Marx inspira um comício realizado em Lisboa, mas, depois da assinatura do Tratado de Londres, emerge o gabinete extrapartidário de João Crisóstomo, apoiado pela emergente Liga Liberal, de nada valendo os 76% conseguidos pelos regeneradores nas eleições de Março.

 

 

 

 

 

Antecedendo a geração espanhola de 1898, surge em Portugal, depois da geração insurreccionista de 1871, a geração nacionalista que é marcante em António Nobre e Alberto de Oliveira. A partir de meados desse ano, florescem em Lisboa sociedades secretas, dispostas a fazer a revolução, desde os anarquistas, mais ou menos niilistas, aos republicanos, acontecendo que, muitas vezes, estes contraditórios grupos se juntam em federações.

 

 

Antero de Quental, nas vésperas do suicídio, publica Tendências Gerais da Filosofia na Segunda Metade do Século XIX, enquanto em Coimbra Eugénio de Castro lança o poema Oaristos, base do nosso primeiro simbolismo que pretendia ser uma poesia nova contra a paralisia que entrevara a poética nacional.

 

 

 

E ficam os versos de Junqueiro, contra os bretões:

Ó cínica Inglaterra, ó bêbada impudente,

Que tens levado tu, ao negro e à escravidão?

Chitas e hipocrisia, evangelho e aguardente,

Repartindo por todo o Escuro Continente

A mortalha de Cristo em tangas de algodão.

(Finis Patriae, publicado em 11 de Abril de 1890)

 

Vejamos a seuência do processo: nota do ministro inglês em Lisboa, George Glynn Petre. Intima Portugal à abstenção de actuação no Niasse, Chire e Macololândia. Dá dois dias para a resposta (2 de Janeiro). Resposta do ministro Barros Gomes. Declara aceitar as exigências, com base na reciprocidade. Pede acordo com Londres ou o julgamento da questão pelas potências da Conferência de Berlim (8 de Janeiro). Petre reclama informação ao governo português o que este tinha comunicado para as autoridades portuguesas em Moçambique. Mas nem sequer dá tempo para a resposta de Barros Gomes (10 de Janeiro). Ultimato britânico. Primeiro, de forma oral. Depois, por escrito (11 de Janeiro).

 

 

 

Exige-se que se enviem ao governo de Moçambque instruções telegráficas imediatas, para que todas e quaisquer forças militares portuguesas actualmente no Chire e nos países dos macololos e mashonas se retirem. É imediatamente convocado o Conselho de Estado. Recebe-se em Lisboa um telegrama do governador de Cabo verde que comunica a chegada à ilha de S. Vicente de um couraçado britânico que parece manifestar intenções hostis. O cônsul português em Gibraltar comunica a passagem de dez vasos de guerra britânicos com destino a Moçambique e que no porto de Gibraltar está a esquadra britânica do Canal e do Mediterrâneo, viajando seguir para Moçambique. O Conselho de Estado reúne até de madrugada. Apenas Barros Gomes e António Serpa se manifestam favoráveis a uma certa resistência, pela retirada das nossas forças dos territórios em disputa, se os britânicos aceitassem a arbitragem, nos termos do artigo 12 do Acto geral da Conferência de Berlim. O resto do Conselho cede completamente ao Ultimato.

 

Vários motins em Lisboa (12 de Janeiro). O consulado britânico é apedrejado. Ataques a jornais. Residência de Barros Gomes é apedrejada. Muitos vivas e morras. A estátua de Camões em Lisboa aparece rodeada de crepes negros, por inciativa do deputado Eduardo Abreu. A Sociedade de Geografia de Lisboa hasteia a bandeira nacional a meia haste. Comício dos estudantes de Lisboa no Jardim Botânico. Comícios em Coimbra, com a imediata criação de batalhões de voluntários (13 de Janeiro).

 

Compõe-se A Portuguesa. Miguel Ângelo Pereira compõe A Marcha do Ódio, musicando poema de Guerra Junqueiro. As libras passam a qualificar-se como as ladras. O verbo inglesar passa a querer significar usurpar. Num comício realizado no teatro da Trindade, é criada uma comissão de defesa nacional, onde se junta gente de todos os partidos (23 de Janeiro).

 

No Porto, forma-se uma Liga Patriótica do Norte, com Antero de Quental e Luís de Magalhães. O ambiente é tenso e os cidadãos britânicos são agredidos na rua. Há várias manifestações contra a Inglaterra, considerada a pirata. Comício republicano no Coliseu da Rua da Palma, em Lisboa, seguindo-se cortejo até ao Largo Camões, mobilizando-se cerca de 40 000 pessoas (11 de Fevereiro).

 

A manifestação é dissolvida pela campanha de apitos da Guarda Municipal, havendo apenas pranchadas. Manuel de Arriaga e Jacinto Nunes fazem discursos em plena rua e são detidos, sendo conduzidos para o navio Vasco da Gama.Inicia-se uma subscrição pública para a defesa nacional, no Teatro D. Maria II: não são um socorro ao Estado, são um manifesto ao País. Entre os organizadores, o conde de S. Januário, o médico José Tomás de Sousa Martins, Roberto Ivens, Luciano Cordeiro, Teófilo Braga, Sebastião Magalhães Lima e Eduardo Abreu (24 de Fevereiro). No mesmo dia, publica-se decreto de 22 de Fevereiro, com ampla amnistia.

 

O estudante republicano António José de Almeida publica um artigo com o escandaloso título de Bragança, o último (23 de Março). Regresso a Lisboa de Serpa Pinto e Vítor Cordon, com grandes manifestações patrióticas (20 de Abril).Realiza-se em Lisboa um comício operário na Rua Nova da Piedade, onde se invoca Karl Marx (4 de Maio). Barros Gomes na Câmara dos Deputados pede ao governo a publicação de um Livro Branco, onde se publiquem todos os documentos sobre a crise (6 de Maio)

Jan 11

Entrevista a Ana Leonor Martins

Em Directo – 41

[José Adelino Maltez]

 

Vira o disco…

 

«Cinco anos do capítulo final de umas glórias memoriosas notáveis», «uma década de neo-cavaquismo» protagonizada por «uma espécie de tio grisalho dinâmico» ou o poeta de «discursos empolgantes» mas com «pés de barro». Segundo José Adelino Maltez, professor universitário, é este o trio do qual sairá o próximo presidente da República Portuguesa. Tudo «glórias do passado» que fazem com que, a partir do próximo dia 22 de Janeiro, se vire o disco para tocar o mesmo.

Por Ana Leonor Martins

 

Com as eleições presidenciais à porta, José Adelino Maltez fala de uma pré-campanha que não garantiu a igualdade de oportunidades e de um sistema político-partidocrático e bancoburocrático; de um país «absurdamente centralizado», «fechado» e «controlado por castas capitaleiras» e de uma «democracia conservadora» a precisar de uma operação de ‘lifting’, de elites não competitivas e de candidatos «sistémicos e conservadores que representam o medo da mudança»; de debates que revelam «desvios gerontocráticos» e de uma «bipolarização estúpida entre esquerda e direita». No fundo, fala de um país a precisar urgentemente de renovação.

[Pessoal] A um mês das eleições presidenciais, como tem visto a pré-campanha?

[José Adelino Maltez] Na pré-campanha houve uma espécie de regresso à política. Estávamos numa situação adormecida e estas eleições vieram despertar o gosto pela debate político, num país onde o sistema democrático enfrenta dois desafios negativos: a corrupção – os índices internacionais dizem que somos o país mais corrupto da União Europeia – e o indiferentismo. A cidadania é um belo conceito, mas está desangrada, e a democracia representativa em crise…

A que níveis se verifica a corrupção de que fala?

A corrupção é a compra do poder e exerce-se em pequenos nadas. O oceano da corrupção em Portugal vem mais do pato bravo na relação com o autarca do que propriamente do grande empresário da banca na relação com o ministro. Para chegar ao poder, os líderes do Partido Socialista (PS) e do Partido Social Democrata (PSD) têm de negociar com os seus autarcas e com os seus caciques. Os partidos estão minados por estes 30 anos de cedência aos micro-poderes da corrupção que gerou uma enorme rede de falta de autenticidade do poder.

Será por isso que se verifica o tal indiferentismo?

Não só. É um problema de todas as democracias quando, como esta, envelhecem. Esta senhora está a dez anos de atingir o tempo de duração do governo de Salazar e tem o dobro do tempo de vida da Primeira República. Precisa de uma operação de ‘lifting’. Todas as democracias europeias do pós-guerra, neste ciclo dos 30 anos, tiveram um sobressalto criativo, uma recriação. A França com o De Gaulle, Itália com a «Operação Mãos Limpas»… A nossa democracia é muito conservadora. As presidenciais revelaram um grande atavismo. Voltámos atrás. Os candidatos que disputam a chefia de Estado são tudo glórias do passado, da década de 1980. O que nos oferecem como alternativa é o presidente da República, o primeiro-ministro ou o poeta oficial do regime desse período. Não há renovação. Estes pais da pátria tiveram descendência mas o filho Guterres fugiu por causa do pântano, o filho Barroso foi-se embora e o filho Santana anda por aí.

Existirão alternativas credíveis na nossa classe política a essas glórias passadas?

Portugal é o país mais fechado da Europa Ocidental. Menos plural, com menor participação da sociedade civil no Estado. É um regime rigorosamente controlado por castas capitaleiras, da capital, e estático na mobilidade social. Somos um país absurdamente centralizado, com um sistema educativo que perpetua a casta e que não permitiu seleccionar os melhores através de um processo de igualdade de oportunidades. As elites não são competitivas, não há meritocracia. Dois exemplos… No tempo do príncipe regente D. João, as duas grandes figuras do governo eram o visconde da Anadia e o visconde de Balsemão. Curiosamente, os seus descendentes são o Paes do Amaral e o Pinto Balsemão, dois dos principais donos do poder em Portugal. A chamada democratização do regime, nascida nos últimos anos do antigo regime com a mítica reforma Veiga Simão, ainda não produziu efeitos. Só agora começará a surgir uma nova elite.

Acha que essas castas vão perder o poder?

Nos últimos 30 anos, houve uma aposta do povão na educação dos seus filhos, uma renovação das universidades e das elites, mas ainda não houve tempo para isso ter consequências na classe política e nos partidos. Pela primeira vez na História, isto que resta de Portugal está prestes a ter uma alteração de fundo. Se quem manda no país não percebe os sinais do tempo, podemos estar à beira de uma explosão, relativamente controlada pela integração europeia e pela globalização. As regras que permitiam que os mesmos vencessem sempre, fossem de esquerda ou de direita, monárquicos ou republicanos, vão-se alterar.

E acredita que podemos ter uma surpresa já nestas eleições?

Não, porque optámos pela velhice e por adiar a reforma. Surpresa como? Mais dez anos de neo-cavaquismo? Toda a gente sabe o que é, vira o disco e toca o mesmo. Soares? Mais cinco anos do último capítulo das memórias finais do grande mestre da conversa, como lhe chamou o «Diário de Notícias». Isto é uma mentira. Os partidos não deixam que isto mude. E a partidocracia dominante já não é uma questão puramente doméstica. O doutor Cavaco, o doutor Soares e a região autónoma alegreira são agentes em Portugal das duas principais forças partidárias multinacionais que mandam na Europa – o Partido Popular Europeu e o Partido Socialista Europeu. Estão dependentes dos seus programas.

Que consequências práticas é que isso trará?

Um povo transformado em organização estadual como o nosso só pode ser independente se souber navegar nas dependências. E nós não criámos uma forma de gerir bem as dependências resultantes da integração europeia e da globalização. Temos um sistema partidário criado à pressa, tipo pronto-a-vestir, nos primeiros dias de Abril que, curiosamente, é decalcado de ideologias alemãs. É tudo ‘ex-novum’. O autoritarismo salazarista matou as memórias. Isto levou-nos a ter agentes das forças partidárias multinacionais. Somos o país mais social-democrata da Europa e do mundo. Só podemos mudar entre o socialismo democrático e os sociais-democratas. É uma ilusão de mudança.

Então, seja qual for o presidente eleito, não haverá grande diferença prática…

O líder governamental do PS começou por ser militante da JSD. Nas declarações que fez de carácter ideológico, tal como Cavaco Silva, disse que era adepto do Bernstein, o inventor da social-democracia do século XX. Os dois são iguaizinhos até no modelo. O Cavaco tem a postura ‘action man’ do Sócrates. É uma espécie de tio grisalho dinâmico. O Soares livrou-se da imagem de padrinho e é uma espécie de avozinho.

O que é que as pessoas esperam do presidente da República?

Em primeiro lugar, como Aristóteles dizia, todos os regimes políticos são mistos – democracia no Parlamento, aristocracia técnica no poder judicial e monarquia ao nível da fechadura do ciclo. Os poderes do presidente são limitados. Mas tem autoridade. Isto conforta-nos e dá um equilíbrio bastante interessante ao regime. Não concordo é com a maneira de se jogar dentro do regime. Ninguém denuncia o facto de até agora termos tido debates apenas com os candidatos sistémicos. E se aparecer outro candidato com 7.500 candidaturas? De acordo com a lógica do Estado de Direito ter-se-ia que repetir os todos os debates.

Pelo menos Garcia Pereira, à data a que estamos a falar [22 de Dezembro de 2005], já as conseguiu e até apresentou queixa na Alta Autoridade para a Comunicação Social…

O Garcia Pereira faz parte do folclore, mas pode aparecer um cidadão independente e nós, à partida, estamos a dizer que ele não tem igualdade de oportunidades.

Isso levanta um problema constitucional…

Levanta um problema gravíssimo, não só constitucional, mas sobretudo de igualdade de oportunidades. Os que têm acesso ao controlo da opinião são os amigos dos donos da televisão. As candidaturas beberam o caldo que os donos do poder comunicacional lhes ofereceram.

A este respeito, o editor de política da SIC, Ricardo Costa, disse que já «tinha dado para esse peditório»…

Corremos o risco de dizer que isto não é uma democracia, mas uma tele-democracia, ou uma sondajocracia. É um momento de reflexão profunda.

Que sentido faz permitir que qualquer cidadão eleitor português, com mais 35 anos, se possa candidatar, se depois as oportunidades não são iguais para todos?

Isso é uma espécie de tranquilizante que normalmente é usado por aqueles que acham que a chefia de Estado tem de ser deste modelo. A diferença entre a forma republicana ou monárquica de chefia de Estado não é grande. No fundo, a figura presidencial é uma espécie de saudade monárquica, de um povo que quer alguém com autoridade mas sem poder. Por outro lado, o sistema político português é partidocrático e bancoburocrático. Há uma ditadura dos partidos, segundo a dominante bancoburocracia, com as influências que tem na comunicação social, que é o quarto poder.

O que quer dizer com isso…

Muitas vezes diz-se mal dos jornalistas, mas eles não existem neste processo. São empregados de empresas que controlam o sistema. Conheço o jogo de controlo da comunicação social. Os tais donos do poder, que são tão importantes quanto os próprios partidos, aliados a uma estrutura bancária de um bloco central de interesses, criaram um sistema de intermediação entre o povo e o poder central que está a fazer um desvio oligárquico do regime. Isto faz com que a democracia não tenha total autenticidade.

Acha que os cidadãos têm consciência dessa espécie de manipulação?

Claro que têm. A experiência democrática tem demonstrado que em momentos-chave a maioria das pessoas comuns sabe escolher melhor do que as elites, porque tem bom senso. Tento entender os sinais do povo e percebo que há uma revolta que a média prazo vai resultar numa mudança de sistema. Não através de uma revolução, mas de uma reforma. Alguns partidos extremistas são uma espécie de lebres. Estão a antecipar alguma coisa que não vão ser eles a gerir.

A crescente implantação do Bloco de Esquerda será disso um sinal?

Não. Isso é folclore. São os filhos da grande burguesia com fatos finórios. Estou a falar de um partido central, com implantação nacional, que saiba interpretar estes sinais de mudança e que faça uma reforma do sistema.

Terão os debates televisivos contribuído para o esclarecimento da opinião pública? Não se tem estado a discutir matérias da competência do primeiro-ministro?

Grande parte dos temas que os moderadores introduziram na discussão, talvez 80%, são programas de governo. Quer Soares, quer Cavaco, revelaram uma grande cobardia ao não discutir os problemas europeus. O debate entre os dois foi uma espécie de luta por uma medalha de honra por ter sido um bom governante no passado.

A dada altura discutia-se inclusive quem tinha escrito mais livros, e sobre o quê…

Isso revela um desvio gerontocrático, um pouco de chechezismo dos candidatos. Estão-nos a pedir que os consagremos como grandes figuras e a discutir livros de memórias. Foi ridículo. Pareciam dois vizinhos a discutir qual dos dois tinha o melhor carro. Mas nenhum deles disse que visão tem da Europa ou da globalização, nem falou na Comunidade dos Países de Língua Portuguesa ou referiu o debate sobre o Brasil, a luta contra a desertificação do interior ou o sentido atlântico da existência. Nenhum deles teve um sonho universal de Portugal… Houve um excesso de micro-política, muita discussão de poderes e pouca discussão de autoridade. Nenhum deles assumiu a macro-política presidencial.

Acredita que um «ilustre desconhecido» teria hipótese de ganhar as eleições?

Se aparecesse um Delgado que exprimisse a voz profunda do povo, mobilizava imediatamente as pessoas adormecidas.

Mas os candidatos que têm as máquinas partidárias por trás terão mais hipóteses… Ou não?

O Manuel Alegre tentou contrariar isso. Depois verificou-se que era uma espécie de ‘soufflé’. Esvaziou no debate. Mas o impulso inicial foi esse. Em 1975, Mário Soares exprimiu essa voz e tornou-se um líder respeitado. Os grandes líderes que tivemos foram os homens para as circunstâncias. O Sá Carneiro, o Eanes…

Se Alegre ficar à frente de Soares, acha que a imagem do PS ficará afectada?

A importância da figura presidencial vai além das questões internas domésticas dos partidos. Manuel Alegre tem alguma qualidade como político, mas talvez tenha criado expectativas em demasia. Notou-se alguns pés de barro.

Perdeu nos debates?

Não tanto nos debates, mas pela falta de mobilização de uma elite que poderia acompanhá-lo neste processo. Acho que houve na pré-campanha eleitoral uma bipolarização estúpida entre esquerda e direita. Qualquer um dos candidatos ditos de esquerda cometeu o erro estúpido de dar de borla o que era a não esquerda a Cavaco Silva. Nunca se faz isto em termos de combate supra-partidário.

Nesse sentido, Cavaco Silva foi mais inteligente, não quis Marques Mendes nem Ribeiro e Castro a fazer campanha com ele…

Cavaco Silva fez o que os conselheiros mandaram. Estar calado. Repetiu exactamente a postura de Sócrates, que não disse nada e acabou primeiro-ministro. É a chamada gestão do silêncio. O drama das escolhas políticas e destas presidenciais tem a ver com o facto de o nosso modelo social assentar num centrão mole e difuso, constituído pelos beneficiários do sistema – os reformados, os sindicalistas da UGT, o funcionário público ou o professor universitário que não faz nada… Ou seja, os subsídio-dependentes. São um milhão de eleitores flutuantes que não gosta de reformas. Ora votam PS, ora PSD. É esse eleitorado que Soares e Cavaco estão a disputar. Os dois representam o medo da mudança. São sistémicos e conservadores.

Não acha curioso que Cavaco Silva, tão criticado no passado, apareça agora destacado nas sondagens?

As pessoas vão à carteira e lembram-se de que no tempo de Cavaco Silva tinham mais dinheiro. Sabiamente, ele está a fazer apelo a uma lembrança de um tempo melhor. Só que as circunstâncias são outras. Salvo as devidas distâncias, ele é uma espécie de Salazar democrático. Reúne a vantagem da democracia, com a vantagem do mito do prestígio financeiro. Já Mário Soares tem a vantagem de ser um Afonso Costa pachola. O mito do líder do reviralho, simpático, que vai à missa e visita o cardeal. Tentam ser a soma de dois contrários. E nós gostamos, porque estes paradoxos tranquilizam-nos. O que eu pergunto é se nos dão futuro.

De que tipo de líder precisamos para ter futuro?

No leilão de políticos disponíveis, não temos nenhum desses. Precisamos de um líder sem medo da aventura e do risco. Uma pessoas que fosse contra o estado de estagnação a que chegámos e que quisesse fazer uma revolução sem sangue. Uma ruptura reformista.

E Francisco Louçã e Jerónimo de Sousa?

Nenhum dos candidatos consegue ser reformista em termos de aventura. Jerónimo de Sousa é um comunista simpático e afectivo, uma espécie de cassete animada. Já não come criancinhas ao pequeno-almoço. É um comunista de Abril. Louçã é um trotskista que faria umas excelentes conferências sobre o que teria sido a revolução soviética se em vez de Lenine tivesse vencido o Trotsky. Faz parte da aventura da extrema-esquerda europeia, mas só é novidade cá. É interessante para o folclore, mas nunca podia ser, por exemplo, um Lula ou um Evo Morales.

Concluindo, vamos ter mais dez anos do mesmo…

Se ganhar o doutor Soares, vamos ter cinco anos do capítulo final de umas glórias memoriosas notáveis. Se for o doutor Cavaco, eventualmente será uma década de neo-cavaquismo. Se for o doutor Alegre, vai ser uma perda enorme para a literatura, porque vai deixar de ter tempo para escrever livros. Mas pelo menos teríamos discursos empolgantes. O essencial disto tudo é que há uma má relação do povo com o Estado. Aí é que reside o drama da crise portuguesa. O desafio da democracia é reconciliar o povo com o Estado. O mal de Portugal são os instalados. Se houvesse instabilidade estrutural, deixava de haver uma ditadura do PS e do PSD. Faz falta pôr em risco os donos do poder, porque então tinham que revelar que eram bons. E não são necessariamente maus. Sou adepto de alguma balbúrdia criativa e não de ditaduras do ‘status quo’. Não aguentamos muita estabilidade. Mesmo que se cometam erros, é preciso dar alma à política. Um refazer da esperança, sem medo.

 

CAIXA

José Adelino Maltez

José Adelino Maltez (n. Coimbra, 1951), licenciado em Direito, é professor catedrático no Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas (ISCSP). Doutor e agregado em Ciência Política, é director do Centro de Estudos do Pensamento Político daquela faculdade. Deu aulas em várias universidades, foi auditor de Defesa Nacional (1985-86) e colabora regularmente com a imprensa. Para além de obras publicadas na área de Ciência Política, também escreve poesia. ALM