Farpas

No dia em que nasceu Montesquieu e em que se comemora o começo da greve revolucionária da Marinha Grande, em 1934, onde a frustrada implantação do soviete local permitiu ao salazarismo liquidar o anarco-sindicalismo da CGT e dar ao PCP o monopólio da resistência operária, tentarei falar de outras coisas mais próximas do eu e das próprias circunstâncias que dele fazem “pensée” face a esse “mouvant”. Direi, em primeiro lugar, que têm sido significativas as manifestações de revolta ortodoxa com que nominativos militantes dos movimentos DPF (Deus, Pátria, Família) e TFP (Tradição, Família, Propriedade) me têm feito chegar, nomeadamente dos que confundem o MM (Movimento Monárquico) com a passada atracção salazarenta ou com a mais recente onda cavaca. Aceito as críticas, respeito-lhes a sensibilidade, não lhes subscrevo o credo, o beija-mão, a prancha, a procissão e a directiva.

 

Confesso que, além de tentar ser intelectualmente ortodoxo, sou um desses heréticos, da seita dos velhos-crentes, que escapou às fogueiras tanto da última como da primeira inquisição, incluindo a santa do ofício, dado manter a fidelidade estóica dos homens livres, que livres da finança e dos partidos, sempre foram fiéis às tais raízes greco-romanas a que o cristianismo costuma fazer apelo quando fala em homens de boa vontade. Por outras palavras, tanto não ando pelas derivas iluministas que geraram o agnosticismo, o progressismo, a utopia, a ideologia ou a revolução, como não frequento as feiras, ou alas, esotéricas que resistem à sexta-feira, dia treze, apesar de respeitar a memória templária, em nome de D. Dinis, e a Ordem de Cristo, em nome das caravelas do infante-grão-mestre.

 

Dizem, aliás, os especialistas em genealogia, que alguns genes de meus ancestrais padecem de pouca limpeza de sangue, porque, apesar da dominante moçárabe e cristã-velha em que se diluíram, eles derivam, como demonstra meu patronímico, de uma mestiçagem estrangeirada e ultra-mediterrânica de certo exotismo emigrante, já plenamente nacionalizado, tanto pela terra e pelos seus mortos, como pela comunidade de sonhos que a ideia alexandrina de império, com pluralidade de pertenças, tem permitido.

 

E é por esta geometria variável de afectos que continuo a subscrever o sonho daquele Portugal universal que nos levou ao tal abraço armilar que sempre foi reproduzir-nos em sucessivas pátrias de novos mundos a criar, diluindo-nos em todos os outros. Gostava de continuar a ser vagamundo do português à solta, sempre a varar as tormentas, com o objectivo de, global e planetariamente me circum-navegar, para descobrir que serei sempre um pedaço do transcendente situado.

 

E tudo medito ao raiar da aurora deste dia dezoito do mês primeiro do anos de dois mil e seis, na precisa data em que a minha escola comemora o seu centenário, magnificamente abrilhantado, logo, ao começo da tarde, com notáveis discursos de convidantes e convidados, com os quais me solidarizo. E como as cerimónias contarão com a honrosa presença tanto dos altíssimos representantes da governação do Estado, como das não menos altas esferas da federação a que chamamos universidade, apenas recordo que nela nos integrámos apenas há pouco menos de meio século, até porque a dita só nasceu depois das partes que a integram, há três quartos de século. Logo, mas não tenho do que congratular-me com o vivório da missa laica institucional.

 

Mas porque todas as instituições continuam a ser mistérios e para poder continuar a ser fiel à perspectiva heterodoxa dos fundadores, que não são propriamente os subscritores do real decreto que instituiu a coisa, nem os pretensos criadores que, depois, a tentaram transformar em criatura, decidi, em nome da lealdade básica, não comparecer ao acto. Coisa que formalmente comuniquei a quem considerei que devia, como mero gesto simbólico de quem continua à espera que a instituição largue o lastro daquela razão de Estado que a fez escola de regime e reconheça os atentados à liberdade de cátedra e à militância dos homens livres que, em outras horas, de outros tempos, foi obrigada a cometer. Mais uma vez não quero ser homem de Corte. Prefiro continua a ter um só rosto e um só parecer.

 

Até porque também não participarei, pelas mesmas razões, no próximo cerimonial que elevará à dimensão da comendadoria, a atribuir pelo ritual do Estado de Direito, a quem nunca respeitou a própria alma do Estado de Direito. E porque o considero sagrado, na minha religião secular do civismo, quero dizer que não costumo vender a alma ao Diabo, mesmo quando este julga que o hábito e o penduricalho fazem o monge. Haverá cada vez menos tempo para elevarmos ao altar os heróis balzaquianos que apenas agitam verbalmente as quimeras em que queremos acreditar, através de verbais exercícios de salão e sedução, como ainda há dias li de alguém, a respeito de um lugar paralelo, ocupado em França pela memória de Mitterrand.

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