Mai 23

A sociedade aberta e o absolutismo inquisitorial das mentalidades fechadas

Confesso nunca ter sido um dilecto admirador de Diogo Freitas do Amaral. Mas, no day after à respectiva saída de funções docentes no ensino público, dado que vai continuar a dar aulas no sistema concordatário, não posso deixar de o saudar e de louvar a respectiva luta pela regionalização. Registo também as ilustres presenças no auditório, para telejornal filmar.

Emocionou-me particularmente a presença do seu antecessor na presidência de um certo partido, que, sem contar as peripécias relacionais com o dito e as respectivas viúvas, declarou, de forma eloquente: não dou notas, mas saliento a última mensagem importante que deixou e que completa o seu legado de professor. Já José Sócrates lembrou após a última aula de Freitas que criou com ele uma cumplicidade especial com o livro ‘Sociedade Aberta’, do filósofo Karl Popper.

Por isso, prefiro salientar as declarações do constitucionalista Jorge Miranda ao DN, sobre as consequências pouco popperianas registadas no universo kafkiano de importantes segmentos do actual aparelho subestatal: “houve um delator, o que é uma coisa profundamente triste”, “o princípio constitucional da liberdade de expressão não pode ser posto em causa dentro da administração pública”. E, acrescenta, “se houve injúria ou difamação, a questão tem de ser resolvida em tribunal e nunca por via administrativa”. Chega ao ponto de dizer que “quem deveria ser demitido era a directora a regional”.

Por cá, com mais um fadista a candidatar-se a Lisboa e com fundamentais reportagens televisivas dos almoços de Costa e Negrão, com ilustres comensais e notáveis, neste regime, onde os mandatários servem para disfarçar a pobreza dos que se candidatam ao formal mando, eu tivesse ido peregrinar um texto que emiti em 8 de Novembro de 1989, titulado A Sociedade Aberta numa Estante Fechada:

Karl Raimund Popper, hoje com cerca de noventa anos, constitui, sem dúvida, um dos principais patriarcas intelectuais deste nosso tempo ocidental pós-marxista. Contudo, a respectiva obra, desde a Logik der Forschung, publicada em Viena, em 1935, só há poucos anos é que transbordou do universo cultural anglo-saxónico, passando também a marcar os países latinos, principalmente depois das traduções francesas da sua principal bibliografia.

Também em Portugal o popperismo chegou em força, na década de oitenta, influenciando, inevitavelmente, o nosso insípido movimento de doutrinas políticas, com destaque para a aproximação liberal de Lucas Pires, para as descobertas intelectuais do Clube da Esquerda Liberal, de João Carlos Espada, ancorado no soarismo, a Pacheco Pereira, um dos intelectuais orgânicos do cavaquismo.

Apesar de tanto atraso, Popper também tem sido um dos semeadores da nossa tímida liberalização e, embora poucos o tenham introspectivado, muitos consideram-no como um elemento da moda, uma espécie de sinal exterior de intelectualidade, que se utiliza para desgarradas citações.

Acontece que noutro dia, ao visitar a biblioteca do antigo serviço público da propaganda e da censura, deparei com a primeira edição da fundamental obra do filósofo: The Open Society and its Ennemies, publicada em Londres no ano de viragem de 1945. Uma obra que apesar de uma razoável edição brasileira, ainda não foi, infelizmente publicada em Portugal.

O exemplar da Sociedade Aberta, apesar de, na referida biblioteca, ficar à mão de semear, estava coberto por poeira com algumas décadas. Arrumado, catalogado e indexado, o livro em causa jaz numa estante fechada. Se furou o bloqueio do autoritarismo português naquele pós-guerra, se não foi retirado da possibilidade de consulta, ficou, assim, por inércia, incomunicável, à espera que outros ventos da história o viessem libertar da poeira do esquecimento.

Na verdade, Portugal é um pouco como este acaso. Deixamos entrar a semente da sociedade aberta, mas preferimos encaderná-la, asfixiando-a numa redoma. Se somos lestos à adaptar epidermicamente novas ideias, sobretudo quando as mesmas assumem a agressividade da moda, depois, não as adoptamos em profundidade, como elemento fecundante das nossas circunstâncias.

Deixamos as ideias originais nas estantes da erudição e apenas as utilizamos indirectamente através de dicionários de citações. Não as deixamos crescer por dentro de nós, dialecticamente. Que o digam os ventos da sociedade aberta que por todo o mundo circulam!

Se estivermos atentos aos discursos políticos do poder e de algumas oposições, poderemos concluir que todos estão irmanados na mesma doença maniqueísta, que continua a considerar verdade aquilo que é contrário ao erro e erro aquilo que é contrário à verdade, numa concordância tácita com o modelo do absolutismo inquisitorial.

Mai 23

Europa, viva o sim pelo não! Obrigado, Charles de Gaulle…

Todos os povos da Europa entoaram na madrugada de ontem um enorme hino de alívio, porque os seus ilustres representantes cupulares, na cimeira de Bruxelas, conseguiram um desses acordos, onde todos concordaram no que estiveram, estão e estarão em desacordo. Até considero justos os elogios de bom aluno que já recebeu do professor-presidente. Contudo, não posso deixar de notar que, noutros traseiros do regime, acontecem paradoxos, como os morosos oito anos que levaram a uma acusação de corrupção sobre o tratamento de águas ambientais na Beira Interior, ou ao pingar diário de mais acusações sobre actuais e passados presidentes de clubes de futebol. Não vou gastar hoje meu latim neste normal de haver anormais, até porque nas duas viagens ferroviárias que fiz ao Norte li semanários políticos em demasia e fiquei enjoado com tantos solavancos deste pensamento dominante que vai lavando as cabecinhas das chamadas classes A e B, este portuguesmente correcto que usa e abusa dos nossos destinos.  Reparei apenas como em época de exames surgem coloridos anúncios universitários, públicos e privados, com muitas publicidade enganosa de agências especializadas em figurantes e figurões, prometendo futuros radiosos e chouriçadas do costume, assim contribuindo para o engrossar dos proletários intelectuais, gerados por este falso planeamentismo que está a transformar o que deviam ser universidades em hipermercados com muitas caixas registadoras de propinas. Apenas noto que estou farto dos falsos gestores que transformam venerandas instituições em manobras de péssimo “marketing”, onde se usa a técnica daquela terra queimada de qualquer invasor, para o beneficiário, depois, andar a pedir melhor emprego noutras paragens. Volto à Europa, recordando até que, na noite de sexta-feira, a debati com socialistas do Porto, onde voltei a ser nacionalista, federalista e liberal, sem qualquer choradinho sobre a resistência de um “Welfare State”, onde todos podem obter o cartão europeu de utente dos serviços públicos de saúde, fazendo bicha numa qualquer loja de cidadão. Porque, em pleno euro, sem ser por culpa do euro, a minha bolsa minguou e nem sequer me permite ir comprar caramelos a Badajoz.  Ainda bem que chegámos a acordo sobre o que estámos em desacordo, coisa que é bem melhor do que darmos música celestial a gongóricos textos que ninguém quer comunitariamente receber, quando não há suficientes símbolos que transformem a Europa numa comunidade de amor, numa ideia e num valor pelo quais valha a pena morrer como cidadãos. O erro dos comandantes do convencionalismo foi o de instrumentalizarem os belos símbolos da nossa “nation des nations” numa tecnocratice, especialmente quando começaram a dizer que a participação directa dos povos era menos legítima do que a decisão dos mesmos povos que indirectamente os canalizou como eurocratas. Esses que, no segredo das cimeiras e dos corredores das mesmas, negoceiam nossos destinos, em nome de falsas legitimidades que os levam a considerar-se como superiores à vontade geral de todos e cada um de nós, os homens comuns.  Ainda bem que, na recente cimeira europolaca, triunfou o método da cooperação política, essa herança gaullista do “oui par le non”, como tão bem a qualificou Maurice Duverger. Pelo menos, alguns europeístas como eu, sempre podem perder a carga demonizante de herético, com que eram qualificado pelos “yes, minister” dos bismarckianos, habsburgos e napoleónicos, atirando-nos para a nebulosa do anti-europeísmo ou do euro-cepticismo, categorias inventadas pela engenharia inquisitorial da burocracia e dos seus anexos de intelectuários, avençados ou subsidiados para colóquios sobre o futuro da Europa, com muitos censores de serviço, dependentes das gavetas de fundos dos patrocinadores.