Uma das fundamentais vertentes da revolução global é a revolução dos mercados. Primeiro, com o reconhecimento do homem como animal de trocas, de mercadorias e de serviços, aquela revolução do doux commerce, na qual muitos profetizaram a inevitabilidade das armas da paz se substituírem às armas da guerra, e que a IBM transformou no seu slogan promocional: world peace through world trade.
Porque, mantendo as velhas leis de Hermann Heinrich Gossen (1810-1852) que ousaram transformar os preceitos do utilitarismo em economia pura, o homem procuraria o seu interesse pessoal e o máximo de satisfação, sempre com o mínimo de esforço.
Com efeito, entre o momento de uma descoberta científica e a respectiva utilização pela grande massa dos homens, sempre houve aquele intervalo que tanto obrigou à produção em série como à sua distribuição pelo comércio. Por outras palavras, a invenção sempre precisou da posterior produção e do mercado e, nestes saltos qualitativos, não bastou o hardware, dado que, muitas vezes, foi o software que permitiu passar das boas intenções à respectiva utilização pelo homem comum. Basta referir o caso da informática, onde os cartões perfurados das primeiras máquinas cibernéticas precisaram de se transformar em personal computer. Mas também este precisou do sistema operacional desenvolvido por Bill Gates, do DOS ao Windows, para poder difundir-se através de uma massificação que, entre o momento do primeiro lançamento comercial do modelo e a actualidade, em pouco mais de duas décadas, gerou um abaixamento dos preços por memória, na ordem dos 99%…
Se perspectivarmos o processo, através de uma das faces da moeda, somos obrigados a louvar, sem qualquer sombra de dúvida, essa revolução pacífica que leva muitos a citarem os exemplos da Alemanha e do Japão que, depois de derrotados e devastados há cinquenta anos, se assumem hoje como os novos senhores do mundo, sem terem investido em defesa e segurança.
Aqueles Estados que, não sendo superpotências militares, nem tendo assento permanente no Conselho de Segurança da ONU, fazem parte do Grupo dos Oito e até são considerados como elementos da tríade dos novos senhores do mundo. Não tanto no aspecto formal e institucional da representatividade visível, mas antes pelo poder infra-estrutural daquela rede global que efectivamente comanda a geo-economia, a geo-finança, a aldeia global da informação e outras tantas actividades discretas que manejam os cordelinhos da humanidade, desde a chamada investigação científica até à própria sabedoria, essa teoria das teorias que permite o manejo dos sistemas gerais, e que controla a recolha da chamada informação-intelligence.
Era a visão do factor Fénix, dos que renasciam das cinzas da derrota, conforme a expressão de A. F. K. Organski (1932-1988), tese a que Mancur Olson (1923-1999) acrescentou a ideia dos vencidos terem que agradecer aos vencedores da guerra, por estes haverem destruído as estruturas políticas e as coligações de interesses que impediam as respectivas economias de atingirem o vigor das leis do mercado.
Aliás, o que nos anos oitenta do século XX se dizia sobre o declínio americano, prenunciando a queda de mais uma grande potência, face àquilo que, então, se supunha ser a irresistível ascensão do Japão, acabou por ser desmentido pela crise dos tigres asiáticos, com o país do sol nascente a sofrer de rigidez e a economia norte-americana a demonstrar flexibilidade, com o desemprego a baixar e a explodirem novos sectores como a biotecnologia ou a chamada nova economia, sem que a Europa mostrasse mais agressividade na sua concorrência, sobretudo, quando preferiu manter o essencial do seu Welfare State.
Talvez a Terceira Guerra Mundial até tenha sido evitada, porque, muito hipocritamente, se concluiu que seria demasiadamente cara, tirando-se uma utilitarista conclusão: afinal, a paz e a cooperação acabam por ser mais baratas para todos! E por isso se seguiu a filosofia típica do merceeiro internacionalista, para quem a paz e a cooperação são de admitir, apenas por gerarem menos despesa ou menos dor.
Neste sentido, o mundo continua a ser uma sociedade irracional no seu todo, conforme as palavras de Herbert Marcuse. Até porque a ameaça da catástrofe nuclear é argumento maioritariamente utilizado pelos que a poderiam desencadear para se perpetuarem, ameaçando toda a humanidade com esse perigo.
No confronto Leste-Oeste da Guerra Fria, acabaram por desempatar os Estados do Oriente e do Extremo-Oriente. A URSS fez a glasnot, mas não fez a perestroika, enquanto a China, preferindo a mudança e a reforma, no sentido do chamado socialismo de mercado, conseguiu garantir a unidade concentracionária do partido único, nessa via totalitária para a liberdade que, por enquanto, é apenas um mercado sem ética e sem justiça. E o maquiavelismo dos ocidentais, preferindo os negócios aos valores da democracia e dos direitos do homem, protegeu o esquecimento de Tian An Men.
Aliás, entre o comércio e a guerra, longa e controversa tem sido a relação. O velho comércio, do latim commercium, de cum mais merx, mercis, mercadoria, pode ser entendido, por um lado, como uma espécie de continuação da guerra por outros meios, e, por outro, ser visto como pax mercatória, como a única forma de se conseguir a justiça.
O mercantilismo, desencadeado pelos primeiros teóricos da soberania, ao assumir a primeira postura, acabou por ser definido por Jean-Baptiste Colbert (1619-1683), como uma guerra perpétua e pacífica de espírito e de indústria entre todas as nações. Porque uma nação só se enriqueceria arruinando as outras nações, ao assegurar uma mais valia das exportações sobre as importações: pour augmenter les cents cinquante millions que roulent dans le public, de vingt, trente, soixante millioins, il faut bien qu’on le prenne aux États voisins.
Assim, ao reduzir a ideia de riqueza estadual à quantidade de numerário possuído por cada Estado, através da técnica do aumento das exportações e da diminuição das importações, o movimento favoreceu a criação tanto de grandes manufacturas, algumas delas directamente geridas pelo Estado, como de companhias de comércio, quase sempre em regime de monopólio. Gerou-se assim um modelo monetarista de intervencionismo do Estado na economia que alguns qualificam como socialismo monárquico.
Esta perspectiva conflitual mantém-se, aliás, no próprio Hegel, quando desenvolveu o conceito de sociedade dos particulares, ou sociedade dos burgueses, esse espaço intermédio entre o familiar e o estadual, que apenas teria como objectivo a prossecução dos interesses dos mesmos particulares, apenas entendidos como os que se dedicam preferentemente a actividades económicas. Esse Estado privado de eticidade, esse Aussererstaat, onde se desenrolaria o combate de interesses privados, da luta de todos contra todos. A tal imperfeita sociedade civil, marcada por laços de profissão e comércio, que apenas teria como objectivo a defesa comum dos interesses e não o interesse público.
Noutra postura sempre se colocou o optimismo liberal. O próprio Hayek (1899-1992) considera que o liberalismo até teria nascido da civilização individualista da Renascença, estando estreitamente ligado à expansão do comércio e correspondendo a uma concepção da vida que surgiu nas cidades comerciais do norte de Itália e obteve pleno desenvolvimento nos Países Baixos e na Grã Bretanha.
Também para Paul Ricoeur (1913-), o Ocidente é um produto da Idade Média dos séculos XII e XIII, autêntico lugar de criação, dado que foi nesta época que nasceram todas as grandes instituições: a universidade, a moeda, o comércio, o Estado, a vida comercial. As posteriores crises, da Renascença, da Reforma, do Iluminismo e das grandes revoluções do século XIX não passariam, aliás, de meras crises de crescimento.
Compreende-se assim que Adam Smith (1723-1790) considere a existência de quatro períodos na evolução humana: a caça, a pecuária, a agricultura e o comércio, salientando que este último teria gerado uma sociedade civil ou comercial, produto de uma espécie de revolução silenciosa que teria ocorrido na Europa e minado as anteriores instituições sociais.
Benjamin Constant (1767-1830) vai, depois, falar numa sociedade mais marcada pelo comércio do que pela guerra: a guerra é anterior ao comércio; porque a guerra e o comércio são dois meios diferentes para se atingir o mesmo fim: o de possuir o que se deseja. O comércio não é senão uma homenagem prestada à força do possuidor pelo que aspira à posse. É uma tentativa para se obter gradualmente o que já não se espera conquistar pela violência. Se a guerra é o impulso; o comércio é o cálculo. Logo, o comércio que foi um acidente feliz é hoje o estado ordinário, o fim único, a tendência universal, a verdadeira vida das nações.
Na mesma onda navega Destutt de Tracy (1754-1836), em A Treatise on Political Economy, Georgetown, 1817, onde, partindo do princípio que a sociedade é apenas uma contínua série de trocas, logo conclui que o comércio é o todo da sociedade.
Não tarda que John Stuart Mill (1806-1873) proclame a chamada lei da troca internacional, segundo a qual o país mais pobre e menos industrializado beneficia sempre com a liberdade do comércio. Da mesma forma, David Ricardo (1772‑1824) em Principles of Political Economy and Taxation, de 1817, defende o livre-câmbio, considerando que este permite tirar todo o partido possível dos favores da natureza: consegue‑se melhor distribuição e mais economia no trabalho. Ao mesmo tempo, espalha-se por toda a parte o bem-estar, o acréscimo da massa geral dos produtos. Conclui, proclamando que a permuta liga entre si as diferentes partes do mundo civilizado por meio de laços comuns de interesse, por relações de amizade e faz dele uma única e grande sociedade.
Longe deste optimismo sempre estiveram os que não beneficiando do free trade, lançaram as bases daquele proteccionismo expresso por Friedrich List (1789-1846), em Das nationale System der politischen Oekonomie, de 1841, que se tornou adversário da escola clássica da economia, a quem acusava de pressupor a existência da associação universal e da paz perpétua, e daí concluir grandes vantagens para a liberdade de comércio, assim confundindo o efeito com a causa. Pelo contrário, no actual estado do mundo, a liberdade de comércio levaria, em lugar da república universal, à sujeição de todos os povos do mundo à supremacia da potência preponderante nas manufacturas, no comércio e na navegação.
O processo já havia sido semeado por Fichte, em Der Geschlossene Handelstaat, de 1800, onde defendia o modelo do Estado Comercial Fechado, uma entidade que devia voltar-se sobre si mesma, tanto no plano jurídico como no plano económico, delineando-se um intervencionismo de tal maneira absurdo que até admitiu proibir ao particulares o exercício de actividades relacionadas com o comércio externo (ver Maltez, 1991, II, pp. 220 ss.).
Para além da era da máquina e do free trade, a Revolução Industrial teve também a ilusão de chegar a um admirável mundo novo, quando se difundiu essa maravilhosa forma de energia chamada electricidade, de tal maneira que Lenine chegou a dizer que o comunismo consistiria numa soma do marxismo com a dita.
Outro deses sinais dos tempos foi, sem dúvida, o automóvel, produzido em série pelo fordismo. Assim, o comunismo da electricidade de Lenine e o subsequente comunismo do tractor de Estaline não passam de filhos dilectos daqueles tempos modernos, iluminados pelas Luzes de uma Razão que, no século XIX, produziu o cientificismo e, no começo do século XX, o futurismo do admirável mundo novo. Na URSS, com efeito, de 1928 a 1940, a produção de electricidade passou de 5 biliões para 48 biliões de quilovátios por hora, ao mesmo tempo que a do aço cresceu 4.3 biliões para 18.3 biliões de toneladas; enquanto a dos veículos automóveis subiu de 8000 para 145 000, de tal maneira que a indústria passou a significar 84,7% da economia soviética.
Mas outras assinaláveis aplicações da viragem tecno-científica se iam propagando, como aquele tónico alimentar não alcoólico inventado em 1886 pelo farmacêutico John Pemberton, de Atlanta, pela mistura de folha de coca com noz de cola.
A firma lançada pelo inventor da fórmula foi comprada por Asa Candler que, alterando a fórmula secreta do produto inicial, o decidiu lançar como refrigerante, através de uma intensa campanha de propaganda. No final dos anos vinte, a empresa passou a ser dirigida por Robert Woodruff que ousou exportar o sucesso, transformando a bebida num símbolo da american way of life, muito especialmente depois da Segunda Guerra Mundial.
A título de curiosidade, refira-se que, em Portugal, o produto chegou a ser vendido no começo dos anos trinta, cabendo a Fernando Pessoa, então publicitário na Agência Hora, o lançamento do primeiro slogan sobre o mesmo: primeiro estranha-se e depois entranha-se. Contudo, os serviços de controlo da qualidade alimentar do salazarismo acabaram por proibi-lo, dizendo que, se o conteúdo correspondesse à marca, tratar-se-ia de uma droga e que, no caso contrário, seria publicidade enganosa. Apesar das pressões norte-americanas, o mesmo produto só foi autorizado a circular em Portugal Continental depois de 1974, quando o vinho deixava de dar de comer a um milhão de portugueses e a cerveja nos dava certa forma de integração europeia.
Faltava também a descoberta do amplificador semicondutor dito transístor, apenas descoberto em 23 de Dezembro de 1947, no Laboratório Bell, de Nova Jersey, que está na base da revolução da informação. Aliás, a passagem da fase eléctrica para a electrónica foi potenciada nos finais dos anos cinquenta, quando surgiram os circuitos integrados, as placas de silício, os semicondutores de cristais de silício ou germânio, que permitiram substituir as anteriores válvulas. O complexo mais uma vez se manifestava, porque é desta possibilidade de miniaturização, com pouca matéria-prima, que se passa à globalização de um processo que nem as potentes antecipações de Jules Verne (1828-1905) conseguiram imaginar.
Curiosamente, neste tempo de globalização, ainda muitos repetem os argumentos dessa velha polémica dos começos do século XIX. Se os optimistas do neo-liberalismo não-ético parecem esquecer que toda a ordem precisa de regulação, já os adversários não querem lembrar que os campeões da regulação da própria economia foram as civilizações onde o livre-cambismo mais prosperou. Basta recordar que o sistema da chamada legislação anti-trust e as próprias regras da concorrência apenas surgiram na Europa Ocidental na segunda metade do século XX, directamente importadas dos próprios Estados Unidos da América, onde haviam sido lançadas a partir de finais do século XIX.
Aliás, nos anos noventa deu-se um salto espectacular da integração económica internacional, não apenas com a transformação da CEE em União Europeia, mas também com a emergência de novas zonas de comércio livre: a NAFTA (North Aemrican Free Trade Agreement), o MERCOSUL e a ASEAN (Association of Southeast Asian Nations).
Com o findar da Guerra Fria, as questões da economia começaram a superar a questão das armas na cena internacional. Nas décadas de setenta e oitenta do século XX deu-se aquilo que muitos autores qualificam como a redescoberta da economia, entendida como a principal força nos negócios internacionais.
O chamado mundo ocidental e o Japão repararam, principalmente a partir da crise petrolífera de 1973, que estavam dramaticamente dependentes do resto do mundo, principalmente quanto a fontes de energia. A dívida dos chamados países em desenvolvimento cresceu de forma assustadora, com o Japão a assumir-se como um dos principais actores da economia internacional e os Estados Unidos a tornarem-se, de principal credor internacional, em principal devedor internacional. Deu-se também um colapso económico da URSS e alguns dos principais parceiros daquilo que tinha sido o COMECOM começaram a integrar a órbita da chamada União Europeia. Se o Pacífico emergiu como um dos principais centros mundiais de crescimento económico mundiais, a União Europeia transformou-se num efectivo mercado único, dotado até de uma moeda comum. Do mesmo modo, largos sectores dos países em vias de desenvolvimento viram frustradas as suas expectativas, ao mesmo tempo que o desenvolvimento das novas tecnologias da informação criou mercados financeiros globais (cfr. Papp, 1994, p.5)
Por outras palavras, o mundo redescobriu que os problemas económicos não se resolviam apenas com medidas não-económicas, que os problemas económicos apenas se resolveriam com medidas económicas, mas não apenas com medidas económicas, para parafrasearmos uma velha ideia de Emmanuel Mounier.
Contudo, a revolução dos mercados assume hoje novo sentido com a emergência da chamada geofinança, dessa network structure por onde escorrem quotidianamente os fluxos das bolsas de valores de todo o mundo, e onde, minuto a minuto, podem pôr-se em causa empresas, moedas, Estados de todas as dimensões e até grandes espaços. Um quase esotérico sector, onde apenas saberão operar cerca de uma dezena de grandes holdings mobilizadores daqueles peritos que detêm as passwords desse esotérico processo. Esses novos poderes que, segundo Bouthros Bouthros-Ghali, transcendem as estruturas estaduais, gerando um poder mundial que escapa aos Estados.
Basta salientar que os três primeiros fundos de pensões norte-americanos – a Fidelity Investments, o Vanguard Group e o Capital & Research & Management – chegaram a mobilizar cerca de dez vezes mais dólares que os conseguidos em Dezembro de 1994 pelo Departamento do Tesouro norte-americano, o Banco Mundial e o FMI, quando procuraram sustentar o valor da moeda mexicana.
Mais: no jogo das bolsas mundiais, todos os dias, cerca de 95% das divisas que mudam de mão prendem-se com actividades meramente especulativas, sendo ultraminoritárias as que correspondem a actividades clássicas, comerciais. Com efeito, o volume de operações de câmbio é cinquenta vezes mais importante que o do comércio mundial de bens e serviços (Andreff, 1995, p. 112).
Daí que propostas de criação de uma taxa mundial mínima sobre as transacções bolsistas, como a que veio do Prémio Nobel de 1981, James Tobin (1918-), tenham tido pouco acolhimento institucional têm tido, quando tal modelo de aplicação da justiça mundial poderia gerar um rendimento de cerca de mil milhões de dólares, quantia capaz de compensar os também milhões que morrem de fome ou de doença.
O mais importante dos novos poderes passa por esse fluxo marcado pelo imediatismo, pela desmaterialização, pela permanência e pelo planetário, ao mesmo tempo que ressurgem certas formas de inconsciente colectivo, como o revivalismo dos rumores, dos receios e da própria fé nas bruxarias. Passámos assim a viver nas teias de uma sociedade de casino, nessa nova religião dos mercados que tem como principais activistas os descendentes dos yuppies, que vão agitando uma massa informe de devotos de um pretenso capitalismo popular, marcado pela velha lógica do enrichissez vous.
A figura dos corretores aventureiros quase ameaça substituir a dos garimpeiros e dos achadores de volfrâmio, e a realidade quase se transforma numa ficção folhetinesca de telenovela, aproximando-se de muitos dos meandros do romance de Dona Branca. Aliás, podem reunir-se, sob os holofotes televisivos, os líderes das superpotências ou do G8, bem como as cimeiras da NATO, da UE ou da OSCE, mas não se conhece o rosto dos mestres do mercado, desses novos predadores para quem os valores da justiça e da honra parecem não contar.
A este respeito, importa sublinhar que revolução dos mercados, expressa pela livre circulação dos capitais, foi precedida pelo processo da desregulação e das privatizações. Assim, o poder económico desmaterializou-se, deixando de ter como base preponderante os chamado factores de produção da teoria marxista, como eram a terra, os recursos naturais e as máquinas, e passou a assentar em factores imateriais, como o conhecimento científico, a alta tecnologia, a informação, a comunicação e as finanças.
Com efeito, deu-se uma espécie de desmaterialização de certos mercados, onde não faltam as próprias mercadorias imateriais, como os chamados futuros puramente financeiros. O impacto da desmaterialização é, aliás, particularmente patente nas chamadas indústrias culturais, dos livros, da música, das artes plásticas, do cinema e até dos próprios títulos escolares, dado que hoje podem negociar-se mestrados e doutoramentos, quase virtualmente (Capella, 1997, p. 246).
O poder, incluindo o poder económico, transformou-se numa rede de poderes. Deixou de ser uma coisa, um patrimonium, um ter, e volveu-se em relação, numa rede de muitos micropoderes, em que os novos mestres predadores e conquistadores já não são apenas os detentores do capital nem os organizadores da era dos managers, mas antes os efectivos manipuladores dos tentáculos dessa rede, principalmente os que conseguem, por todos os meios, a necessária inside information. Surgiram, deste modo, novos grupos que, escapando às anteriores formas de representação e de legitimação política e social, logo manifestaram desprezo pelo bem mais precioso de qualquer democracia: aquela informação que permite a consolidação de uma opinião crítica.
Continuando a seguir o inventário do professor de economia de Lovaina, Ricardo Petrella, num artigo célebre Les Nouveaux Maîtres du Monde, publicado em Le Monde Diplomatique, de Novembro de 1995, esses novos poderes têm, com eles, legiões de aliados e colaboracionistas, desde os quadros da tecnociência aos criadores de símbolos, onde também é marcante o conúbio entre os universitários e os opinion makers, aliás paralelo à própria entrada dos grandes media no sistema dominante.
Aliás, estes novos elementos até diferem qualitativamente dos anteriores managers ou organizadores, denunciados em 1940 por James Burnham (1905-1987), do mesmo modo se distanciando dos chamados tecnocratas dos anos sessenta. Até vieram dar uma nova dimensão à chamada investigação científica, tornando caducas as velhas estruturas universitárias, quando algumas destas ficaram dependentes das empresas e das fundações transnacionais e se libertaram dos subsídios públicos, directamente recebidos das agências estaduais ou das organizações inter-estaduais. O grupo, cada vez mais cosmopolita, até ganha algumas características de casta apátrida, encontrando-se nas mesmas escolas de formação permanente e actualizando o velho receio da sinarquia, conforme as profecias de Saint-Yves d’Alveydre (1842-1900), para quem o mundo poderia ser conquistado por um sociedade secreta que integraria uma elite de técnicos e de representantes dos banqueiros.
Já não temos as sete irmãs das multinacionais petrolíferas, das grandes famílias que dominavam o tempo de mera troca de mercadorias que marcou o auge da revolução industrial. Passámos para a sociedade da informação, onde o novo bezerro de ouro é um produto que não se consome, como acontecia com o petróleo ou a alimentação, dado que se cria pelo uso e até pode reproduzir-se pelo abuso.
Como assinala Robert B. Reich, na sua obra The Work of Nations, de 1991, as actuais empresas multinacionais já não cabem no universo concentracionário dos modelos burocráticos e centralizados, tendo constituído uma vasta rede de entidades descentralizadas, de tal maneira ramificadas pelo mundo que até já não podem receber um bilhete de identidade nacional. As empresas em causa deixaram, definitivamente, de ter pátria, até pelas participações cruzadas que se foram estabelecendo entre as que representavam as principais marcas do mercado.
O cientista e filósofo húngaro Karl Polanyi (1886-1964) em The Great Transformation, de 1944, já referia a dinâmica interna da produção em massa de mercadorias, porque voltada sobre si mesma, levou a um crescimento ilimitado das trocas e a uma autonomização incontrolada do mercado.
O chamado fim do comunismo não foi, afinal, o fim da história, dado que a vitória dos modelos ocidentais significou a consagração de um estilo de organização marcado por factores totalmente diversos daqueles que poderiam ser captados por Karl Marx ou Lenine. Em primeiro lugar, surgiu a resposta teórica keynesiana, geradora daquilo que uns qualificam como consenso social-democrata e outros, como mero socialismo de direita. Seguiu-se o exemplo do New Deal de Franklin Delano Roosevelt, assente na aliança entre o capital e o trabalho. Avançou-se, depois, no compromisso fordista. E, na Europa Ocidental, social-democratas e democratas-cristãos promoveram a instauração de um Welfare State que acabou por ser eficaz, tanto para a superação do Warfare State, como para a competição com os modelos do socialismo real, de marca sovietista.
Acontece que, com o fim do mundo bipolar, mais do que a emergência de uma só superpotência, começou a desenhar-se um nebuloso império dos grandes países ricos, fundador do Grupo dos Sete, império esse que assenta em três moedas sólidas (dollar, deutsche Mark e yen), tem, como guardas avançadas, duas ou três praças financeiras fortes, núcleo duro que, pelos recursos, pelo poder de mando e pela atracção mimética, foi controlando quase todas as principais elites dos chamados países periféricos, e navegando num mar informativo manejado por agências como a Reuters ou a Dow Jones.
Com a chegada do euro, apenas nos apetece recordar que também o dinheiro não tem pátria. Aliás, o americano dollar tem origens etimológicas no alemão thaler, começando até por ser a designação dada pelos ingleses ao peso espanhol que circulava nas possessões sul-americanas, antes de se transformar na unidade monetária norte-americana desde 2 de Abril de 1792. E foi em nome da americanização que se instituíram o deutsche Mark, gerado pela ocupação americana, e o próprio Yen japonês. As três pessoas da tríade, estão, por dentro, unidas por uma neutra perspectiva circulatória…
A humanidade, depois de 1989 e do dobrar do milénio, também não chegou ao fim da história, porque logo se sucedeu uma espécie de balkamondialisation, com o regresso das nações e até das etnias, não se confirmando a previsão de um Kenichi Ohmae, o mr. Strategy, que proclamava o fim do Estado-Nação e a chegada de uma redentora entidade maior, a que chamava Estados-Região, porque, face à emergência de um capitalismo supra-territorial, os Estados apenas exerceriam funções transitórias no âmbito da organização e da regulação económicas.
Com efeito, o ritmo da política internacional que nos passou a marcar, depois da Guerra Fria, acabou por aproximar-se de modelos típicos dos anos vinte do século passado, dado que inúmeras Nações sem Estado voltaram a emergir. Os nacionalismos, muito particularmente os etnonacionalismos, eram, afinal, brasas por extinguir, que logo se avivaram com os novos ventos da história, quando estes sopraram as cinzas dos superpowers que os proibiam. O explodir do espaço controlado pelo imperial-comunismo soviético; os problemas que o Império Britânico deixou por resolver no Médio Oriente e no subcontinente indiano; a questão do renascimento árabe; ou as guerras civis africanas, afinal, não são causas, são sintomas. Por muito novas que fossem as maravilhas do século XX, nenhuma das forças instaladas no comando do universo foi capaz de construir um desses homens novos que as mesmas, repetindo o Iluminismo gnóstico, prometiam edificar sobre a pretensa tabula rasa do homem de sempre.
A globalização económica, onde a geofinança passou a comandar a geoeconomia, ao mesmo tempo que se desenvolveram instituições globais de vigilância como o G7/G8, o Fundo Monetário Internacional, o Banco Mundial e a Organização Mundial do Comércio, vai levar a que se assista à eliminação do modelo de Welfare State e à crise das ideologias que o geraram, da democracia-cristã à social-democracia.
O dinheiro transformou-se no mais mobilizador dos valores universais do nosso tempo e, com ele, veio uma difusa forma de corrupção, onde se compram e vendem factores de poder, pelo simples uso da inside information. Porque a sociedade contemporânea, marcada pela difusão da informação, ao criar uma hiper-informação, teve que passar a assentar em redes de circulação, logo, quanto mais a informação de difunde, mais a rede se valoriza.
O poder deixou, assim, de ser uma pirâmide e transformou-se num labirinto, onde, ao mesmo tempo que os actores da decisão se multiplicam, se torna brutalmente desigual o acesso ao que é relevante, dado que raros sabem qual o local onde as fundamentais decisões são realmente tomadas.
Sobre as questões da nova economia política: Arrow (1951), Ashley (1980), Blake (1992), Buchanan (1962, 1968, 1975, 1977, 1978, 1986), Corm (1993), Dicken (1992), Downs (1957), Drucker (1993 e 1995), Etzioni (1988), Frieden e Lake (1991), Galbraith (1952, 1967, 1973, 1980), Gill e Law (1988), Gilpin (1987), Goldstein (1993), Gourevitch (1986), Grieco (1993), Hall (1986), Hart e Spero (1996), Hirschman (1945), Knorr (1975), Knorr e Trager (1977), Kuttner (1991), Lairson (1993), Lake e Frieden (1991), Lindbeck (1973), Lindblom (1977), Livingstone (1989), MacNeil, Winsemius e Yakushiji (1991), Medeiros (1992), Murphy e Tooze (1991), Myrdal (1929, 1953, 1957 e 1960), O’Gorman (1995), Oliveira (1998), Olson (1976 e 1982), Perroux (1969, 1970), Porter (1986, 1990), Reich (1991), Robbins (1937), Rosecrance (1986), Rostow (1960, 1978), Sandholtz (1992), Schmidt (1991), Spero (1981), Spiro (1999), Strange (1988, 1991, 1996), Thurow (1999), Tullock (1962, 1978), Walters (1992), Weiss (1998), Young (1968)