Mar 01

Sócrates com energia vital…

Sócrates lá conseguiu vencer as ondas revoltas do espinhoso mar da porta estreita e apresentou uma magnífica coligação do PS com o blogue “Causa Nossa”. Respirei de alívio. Achava insuportável que a democracia atingisse o paradoxo de, em vez de Vital Moreira, meu antigo professor,  elevar a cabeça de lista do PS o paradigma um qualquer adesivo ou vira-casacas. Vital Moreira, com quem nunca coincidi em crenças e concepções do mundo e da vida, tem a grande vantagem de viver como pensa e de ter saído em defesa deste modelo socrático, no dia a dia do combate de ideias, revelando uma coerência, uma pertinência e uma inteligência que todos os adversários respeitam. Eu, pelo menos, até um dia fiquei aliviado, quando ele saiu da nebulosa da legalidade revolucionária do cunhalismo e veio usar as armas da inteligência e da emoção ao serviço do pluralismo democrático e da sociedade aberta, com sincero arrependimento. Julgo que, hoje, Vital deixaria que, nos primeiros artigos da constituição, aparecesse a palavra comunidade, não a considerando incompatível com a luta de classes, como podemos ler, com alguma curiosidade de bisbilhotice historicista, nos diários da Assembleia Constituinte…

 

É evidente que continuo a não estar com ele, preferindo subscrever as palavras do Professor Vitorino Magalhães Godinho, as impertinências de António Barreto, as críticas de Medina Carreira ou a resistência de Manuel Alegre. Mas julgo bem mais estimulante que o situacionismo socrático chame para a trincheira um dos melhores de Portugal, em pensamentos, palavras e actos. Pelo menos, tenho agora a certeza que o socratismo vai responder, vai argumentar e vai enriquecer a racionalidade da democracia, embora muito dificilmente possa receber o meu voto, não por alergia ao PS, porque já noutras alturas votei nesse partido, de acordo com a lógica de “do mal, o menos”, em que algumas vezes caí e que talvez venha a repetir no próximo acto eleitoral, mas com a cruzinha noutro lugar.

 

Lá do outro lado da vida, Álvaro Cunhal vai notando como a respectiva sementeira frutificou, entre Ilda Figueiredo, ainda no PCP, Vital Moreira, no PS, Miguel Portas, no Bloco de Esquerda, Zita Seabra, no PPD, e Celeste Cardona, no CDS (uma piada real que ouvi do Daniel Oliveira). Mas os membos da redacção de “O Grito do Povo” e os militantes do ex-MRPP estão também em boa posição para a disputa, desde Durão Barroso, nas alturas de Bruxelas, a Ana Gomes, assessorando Vital Moreira, passando por muitos outros que enxameiam todos os pequenos, médios e grandes partidos da direita e da esquerda, bem como as direcções e redacções dos jornais e televisões, desde os defensores do pundonor de Sócrates, aos que este acusa de campanhas e manipulações, para que venham os magistrados investigar e julgar, onde também alguns dos mais mediáticos passaram pelo frenesim da doença infantil do esquerdismo.

 

Portugal é, definitivamente, o país mais à esquerda da Europa e do Ocidente, o mais socialista e o mais anti-liberal e anti-conservador. E talvez por causa dessa fuga ao real, entre utopias e ideologias, é que somos também o mais pobre e o mais injusto, porque abundam as medidas do liberalismo a retalho, com governos de esquerda com mentalidade de direita, onde os preconceitos de esquerda inventam a direita que lhes convém, pintando-a de fantasmas e onde ninguém de direita se assume como de direita.  Com efeito, porque a direita e a esquerda não são posições ontológicas, ideologicamente detectáveis, mas meras posições relativas, acontece sempre que as acções dos homens acabam por não corresponder às respectivas intenções. Diogo Freitas do Amaral que, no início da democracia, queria estar rigorosamente ao centro, acabou por ser o máximo de direita permitido pelo arco constitucional estabelecido pelos Pactos entre o MFA e os partidos. E Sócrates, de quem o primeiro acabou por ser ministro, corre o risco de dizendo-se de esquerda, estar, agora, no tal rigorosamente ao centro, podendo ser lançado pelo povo para a direita que ele detesta.

 

Mas Salazar, que nunca disse que era de direita, que nunca foi de esquerda, apenas assumindo-se como do centro, acabou por exterminar a direita e a esquerda, procurando monopolizar o todo, malhando à esquerda e à direita. Também Estaline foi purgando os desviacionismos de esquerda e de direita.  Porque ambos não queriam aparecer e parecer partidos, isto é, como simples partes, simples perspectivas, lugares que circulam à volta e à procura da verdade, mas sem nunca a decretarem como total. Por outras palavras, em democracia pluralista, a direita e a esquerda acontecem pela actuação dos homens livres, porque não é a história que faz o homem, mas o homem que faz a história, mas sem saber que história vai fazendo.

 

Eu, por exemplo, que, para malhar no pensamento dominante da esquerda a que chegámos, me gosto de dizer de direita e, ainda por cima, liberal, conforme as autodefinições que carreei aqui para a coluna de direita deste blogue e às quais procuro ser fiel. Mas como um direitista liberal, aqui e agora, sou capaz de assumir algumas posições bem mais à esquerda do que a maioria dos situacionistas deste socratismo. Aliás, fiquei descansado, quando, por estes dias, vi activíssimo, no Congresso do PS em Espinho, um companheiro de concepções do mundo e da vida, com quem comungo muitos dos subsolos filosóficos que me marcam. Ambos fomos, há poucos anos, dos principais escrevinhadores do programa de um projecto de partido que falhou. Embora eu não tenha ido, como ele e alguns outros companheiros dessa estrada, para o PS, permanecendo fiel a algumas das ideias centrais da Internacional Liberal, a cujo congresso senegalês fomos os dois, nem por isso deixo de reconhecer o essencial dessa comunhão de valores. Gostei de te ver em regresso ao sítio onde nasceste, amigo! Força!

 

PS: Espreitei a verrina de Professor Marcelo. Chamou ao “blogue” qualquer coisa como “nosa nostra”, reconheceu que obrigou Vital a uma segunda retirada, quando assinou com Guterres um alteração revisora da constituição e desejou que o cabeça de lista do PS concluísse a agregação. Ao contrário das primeiras leituras, apenas saliento como certos agregados desleixados da endogamia se deveriam envergonhar, seguindo o exemplo de Vital. Este, ao menosa, respeita a carreira e o “cursus honorum”, embora seja bem melhor do que muitos catedráticos que por aí andam, a começar por mim, que, por experiência própria, de seu aluno, o posso reconhecer publicamente, com toda a charanga da justiça.