Esta de dar razões antes do tempo, isto é, de vislumbrar antecipadamente o consenso entre os que pensam de forma racional e justa, nada tem de profético, mas antes de saber feito de experimentação. Basta subir ao velho cedro dos Penedos da minha infância e, lá de cima, ver o que se esconde para além do muro do caminho. Basta ter saudades de outro tempo, quando muitos homens e mulheres que andavam pelos comandos dos aparelhos da administração pública nos davam bons exemplos de iconoclastia, como ontem dizia Manuel da Costa Brás, na RTPN, quando nos aconselhava quanto à escolha da figura do Provedor de Justiça. Aprendi, com Fernando Amado, que um pigmeu pode ver longe, se subir à cabeça do gigante.
E também ontem, recordei um episódio da minha vida, ainda meio-adolescente, de cronista de ideias em jornais. Escrevia semanalmente num desses diários que já fecharam e, certo dia, bati forte e feio na corrupção de autarcas, teorizando aquilo que efectivamente conhecia, mas sem que saíssem insinuações verrinosas sobre alguém. No dia seguinte, o director da publicação telefonava-me, muito aflito, porque um motorista, vindo do gabinete do Costa Brás, tinha acabado de deixar-me uma missiva, de envelope timbrado. Como eu estava longe da capital, logo descansei o director e pedi que ele abrisse uma carta que o mesmo supunha ser o desencadear de um processo pelo meu excesso de liberdade de expressão. Assim o fez e logo ficou descansado. O antigo provedor apenas saudava a minha coragem e reforçava a perspectiva, dando ainda mais exemplos categoriais da degenerescência da compra do poder.
Outros são os tempos. E tenho saudades desses oficiais que fizeram o Abril de 1974, lutaram para que fosse possível o Abril de 1975 e assumiram a rebeldia militar para devolver o poder ao povo em Novembro de 1975, porque se nos fiássemos nos que estavam contra Eanes, nesses dias de Novembro, não teríamos agora certos professores estalinistas, trotsquistas e maoístas, feitos ministros, deputados e candidatos a deputados, dando lições magistrais e autoritárias sobre a defesa da democracia constitucional, de que eles foram primitivos e assumidíssimos inimigos. Tenho, sobretudo, saudades dos advogados da geração Adelino Palma Carlos que me ensinaram liberdade, como o bastonário Almeida Ribeiro, que foi a Caxias visitar os presos do 28 de Setembro de 1974, quando Otelo assinava mandatos de captura em branco e partidos eram proibidos por decreto da tropa. Isto é, quando o partido dos becas voltava a assumir o 1820 de Manuel Fernandes Tomás, contra os exaltados de extrema-esquerda que, poucos meses depois, passariam a carrascos de D. Carlota Joaquina, como ministros do reino por vontade estranha.
Escrevendo nos jornais desde os dezasseis anos, de forma livre, polémica e desabrida, nunca tive um processo, ou um direito de resposta verrinoso e são milhares os textos que publicitei. Sofri do lápis azul da censura desde as primeiras linhas que emiti em tinta do prelo e só há uns tempos tive finalmente a confirmação da mudança do paradigma dominante, quando, além de uma resposta oficiosa de um sua excelência directorial, me brindaram com um blogue anónimo, dezenas de cartas de dependentes a defender o chefe, no mail público do carreirismo, e um processozinho de alçada interna que ainda corre seus termos e sobre o qual, anos depois, ainda não posso falar, nem ao Provedor.
Percebi ontem o ambiente, quando um senhor secretário de Estado veio a parlamento, mais uma vez, insultar os professores, dizendo que quem não cumprisse o regulamento decretino, emitido pelo verticalismo hierarquista, não passaria de um coitadinho que não poderia ser promovido. Por outras palavras, a ministerial figura do nosso burocratismo delegado tornou patente a cultura de que é consequência. Não lhe dou o nome de pedra, pedreira ou pedregulho, nem lhe respondo, de baixo para cima: coitadinho é Vossa Senhoria! Prefiro reverenciá-lo sem temor, com um hossana nas alturas, extensível à ministra rodriguinha e ao sousíssimo José, o Primeiro.
Reparo apenas como, por estes dias, valeu a pena ser iconoclasta sobre o Provedor, dando nomes aos bois e incomodando a corrente dominante, ao mesmo tempo que ia metendo algumas areias de pensamento na engrenagem do tal poder situacionista que nos trata como os mal-amados, suceptíveis de internamento no asilo dos marginais e do ostracismo. Mas a democracia não são eles, somos nós. Apenas lamento que o Daniel Proença de Carvalho se tenha tornado advogado do engenheiro Pinto de Sousa, que José Miguel Júdice seja empresário de sucesso, que António Barreto se tenha presidencializado, ou que o Jorge Bacelar Gouveia, que muito justamente poderia aspirar à função, tenha preferido a coragem de ser mandatário de um companheiro político que estava em baixo, não fazendo os habituais cálculos carreirísticos dos cobardes. Se José, o Primeiro, pudesse mostrar as cunhas que recebeu dos “boys” e dos avençados, a democracia correria muitos riscos. E se Manuela, fizesse o mesmo, com outros nomes do ex-situacionismo do cavaquistaão, a gargalhada poderia estragar a festa de inauguração de um “solar dos barrigas”, onde será gravada a ferro e fogo a frase que estava na entrada da quinta do avô de José Lello.
PS: Já sei quem não vai ler esta crónica. Não me revolto. Apenas confirmo a intuição da inevitável mudança. Que venha a coragem.