Mar 20

Onfray e este anarco-direitista da pátria da Ilha dos Amores, farto da hemiplegia da esquerda contra a direita, com que a França nos vem colonizando

Ontem foi tarde e noite de boião de cultura, bem à francesa, com filósofo no palco, jantar nos jardins da embaixada, muitos intelectuais enfarpelados e diplomatas q.b., segundo o conceito de elite dos senhores adidos. Já há anos que o não fazia, mas o pensador valia a pena e a amizade com os editores do Campo da Comunicação obrigaram-se ao prazer de visitar essas de reservas da cultura luso-parisiense. O pretexto chamou-se Michel Onfray, de Caen, dito seguidor de Foucault,  Bourdieu, Deleuze e Guattari, mas sem memórias estalinistas ou trotskistas, dito de uma lógica republicana de esquerda, assumidamente libertária, contra Freud e contra o anarquismo milenarista do século XIX, porque, contra os microfascismo, importam as micro-resistências.

 

Claro que não lhe fiz a pergunta que me apetecia, saudando esse último resto das invasões francesas que ainda permanece na nossa estupidificação, que é a tal hemiplegia mental em que a esquerda nos divide entre a direita e a esquerda, enchendo a primeira de preconceitos, porque assim pensa que se livra dos fantasmas. A tal esquerda que, depois, disfarça a coisa recorrendo a uma abstracção, marcada pela bipolaridade unidimensional vinda do maniqueísmo. De Caen, aprendi mais com Simone Goyard-Fabre e os cultos de Aron e Tocqueville.

 

Onfray é intelectual. Como Alain Bénoist esteve para a nova-velha direita, André Glucksman e Bernerd-Henri Lévy, para os arrependidos do Mai-68 e Luc Férry para direitistas como eu. Todos muito “radical-chic”, onde a esquerda ou a direita do snob, ainda presas pelos croquetes das recepções, tentam converter-se ao “radical chic” dos arremedos de caviar e do verdadeiro “champagne”. Onfray, muito estreitado pelo “slogan” do manifesto ateísta, é bem mais do que essa adjectivação, dado que mergulha numa clássica tradição, que circula por Helvétius e Holbach e procura aproximar-se de um novo sindicalismo revolucionário, segundo os modelos de Proudhon. Mas, para “épater” um mitificado “bourgeois”, não deixa de candidatar-se à imagem de mestre-pensador, com dicionário próprio. Por outras palavras, o discípulo de Bourdieu, encanta-nos, precisamente, por causa das “règles de la méthode” do típico “homo academicus”.

 

Felizmente que não levou gravata. Eu também não. E os adidos franceses ficaram assim sem saber as causas que impedem o actual galicismo de reocupar o espaço perdido de influência, agora que estamos a ser vítimas dos exageros da “way of thinking” anglo-americanas. Por mim, que continuo francesista, disse, mais uma vez, presente. Primeiro, para reconhecer como o nome libertário foi usurpado pelos neo-liberalões dos “States”. Segundo, para me felicitar por esta indisciplina no seio de certa esquerda, até aqui enquadrada pela célula do revolucionário profissional, ou pelos núcleos seus sucedâneos, trotskistas, maoístas e polpotistas.

 

Porque coincido com o libertário na sua rejeição liberal do processo histórico e, muito à Tocqueville, detesto os controladores do processo histórico, sobretudo, do conceito de revolução. Até porque também acredito que não é a história que faz o homem, mas o homem que faz a história, embora sem saber que história vai fazendo. Etambém me apetece glosar a “velhice do padre eterno”, mas sem ser ateu e até agnóstico, mantendo-me fiel a Espinosa e à sua heresia panteísta, não para acirrar o deicídio, mas para que se regresse à pluralidade dos divinos. Logo, meto-me, sem querer, no mesmo saco que César das Neves tenta extinguir em ridículo.

 

Com a bela aula de Onfray, apenas confirmei que só é novo aquilo que se esqueceu, que só é moda aquilo que passa de moda. Reparei que o tradicionalíssimo hedonismo pode também contribuir para o reforço daquele humanismo que, desde sempre, proclamou que o homem, enquanto indiviso, pode ser, de novo, a medida de todas as coisas. Pode até servir para que a já idosa filosofia do desejo, largue o estreito conúbio entre Marx e Freud, reperegrinando Nietzsche e dando ao niilismo alguma ascese. Por mim, mais anarco-direitista, filho do “Homem Revoltado” de Camus, editado no ano em que nasci, temendo o exagero sofista do umbigo discursivo, continuo a preferir a velha disciplina das academias peripatéticas e dos quodlibéticos das universidades medievais. Não quero acabar circulando com a pipa das orgias a disfarçar-me as vergonhas e com os seus sucedâneos etéreos, à Wodstock. Esses que voltam à ilusão dos amanhãs que cantam, só porque assistem a grandes realizações hollywoodescas que exploram a nostalgia revolucionária.

 

Continuo a detestar o neodogmatismo pretensamente antidogmático da velha casta dos intelectuais que passam para a categoria dos intelectuários. Prefiro Montaigne e a filosofia alternativa da vida quotidiana e não me fecho nos manuais “against method”. Pensei nessa do “plaisir du plaisir”, como forma de transcendente, saindo da filosofia do desejo e pisando os terrenos da filosofia do prazer. Não lhe chamarei utilitarismo de esquerda, porque temo o intervencionismo do poder para definir o campo do mínimo ético.  Também detesto esse pretenso hedonismo da sociedade de consumo, o hedonismo do ter, procurando pisar a ascensão do hedonismo do ser, com uma ética existencial, resistindo às dominações. Mas não me apetece perder na desmontagem de Deus e na denúncia das três grandes religiões do Livro, como o judaísmo, o cristianismo e o islamismo, e do seu irmão-inimigo laicista, que lhe manteve o conteúdo. Porque ainda há metafísica não redutível à física do desejo. Sou definitivamente um materialista idealista, ou um transcendentalista-idealista, nesta procura da natureza das coisas e do transcendente situado.

 

Muito menos reduzo tudo ao binário da esquerda contra a direita ou da direita contra a esquerda, posições filosoficamente inimigas da filosofia, essas tradicionais formas de hemiplegia mental, como diria Ortega y Gasset com que a França continua a colonizar Portugal. Mas aceito o contratual, mesmo no erotismo solar e recordo o que me ensinou Agostinho da Silva, quando referia que a nossa Ilha da Utopia era a Ilha dos Amores, em verso épico.