Depois de ler algumas manifestações de desencanto de certos liberais católicos que, outrora, desperdiçaram a respectiva intolerância congreganista açulando a caça aos miguelistas, atacando quem, sendo tradicionalista, desembarcaria no Mindelo e faria a Maria da Fonte, tenho de concluir que Bento XVI antes de o ser já o era. Porque nenhuma nova era se desencadeia a partir de um simples acontecimento, seja um acto eleitoral que santifique um padre, seja a descida do espírito santo sobre a cabeça de 115 mortais que, sendo falíveis, só pela transfiguração podem escolher quem ascende à infalibilidade. Os insondáveis meandros do Vaticano, cujos segredos nem Dan Brown conseguiu desatar, têm mais a ver com a experiência secular dos salamaleques da Razão de Estado do que com um dos nossos debates parlamentares sobre o programa do governo ou a reforma do sistema político, animados por Francisco Louçã e Telmo Correia. Ratzinger é o cardinalício elevado ao clímax, o consagrado teólogo do Vaticano II que soube conservar o catolicismo e sustentou doutrinariamente o papa polaco. Daí que nenhum católico, que perfilhe os dogmas e as regras processuais do papismo, possa criticar “extramuros” o processo, a não ser que caia no ridículo de Salazar que, em conversas com os seus ministros, denunciava os erros teológicos do seu contemporâneo João XXIII. Também nenhum não-católico pode desancar na coisa a partir de uma perspectiva teológica. Mas temos o direito de entrar em dialéctica com a Razão de Estado vaticana no plano meramente secular, a partir de uma perspectiva política ou de uma perspectiva filosófica, denunciando as diferenças, até para que se identifiquem os lugares comuns, através dos quais se sustenta o diálogo entre adversários. Neste sentido, se é difícil, por agora, a postura em que se encontram os liberais católicos, julgo que têm as mãos mais livres os liberais não-católicos, especialmente os que também não sofrem de anticatolicismo. Eu, pelo menos, congratulo-me com a clarificação do nevoeiro, tendo, sobretudo, em atenção o mercado das ideias, principalmente, no tocante aos subsolos filosóficos, desde que ninguém pratique a missionação, do género da propaganda da fé, ou a irmã-inimiga da “agitprop”. Compreende-se também a decepção dos progressistas cristãos que, em nome do socialismo cristão, sonhavam com a conciliação entre o marxismo e o eclesiástico, instrumentalizando as leituras dos textos do Vaticano II, em favor dos peixinhos vermelhos em água benta. A era desta confusão de narizes e boas intenções parece ter chegado ao fim. Da mesma forma, podemos dizer que chegou agora ao Vaticano o fim da guerra fria. Aquilo que era a grande coligação negativa que, em termos intelectuais, sustentava o combate contra o sovietismo, a que alguns davam o nome de de comunismo, começou agora a concluir a respectiva saída da encruzilhada. Não para que surjam novas guerras santas entre os catolaicos e os estatolaicos, mas para que se distingam os campos e se desencadeie o necessário diálogo, a que alguns chamam modernismo e a que eu chamo tradição, pluralista, consensualista e complexa. O que passa por não abrirmos certos armários onde se guardam os esqueletos da intolerância passada, nomeadamente o combate entre congreganistas e anticongreganistas. Identicamente, terá que serenar o nevoeiro reactivo e emocional subsequente à entronização de Ratzinger que, epidermicamente, quase pareceu unificar pagãos e liberais, com Louçã e Soares a reeditarem uma espécie de frente neojacobina, onde apenas parecem faltar os formigas da Associação do Registo Civil. Cá por mim, prefiro procurar ser fiel a outras tradições liberais, desde as que foram representadas por Herculano, Ferrer e D. António Alves Martins, às que, defendendo a liberdade religiosa, foram assumidas em plena I República, contra a intolerância afonsista, por políticos como Leonardo Coimbra, Raúl Proença ou António Sérgio, culminando na imposição do barrete cardinalício ao núncio pelo grande emotivo da portugalidade que se chamou António José de Almeida.
Abr
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