A superveniência de tópicos confessionais que tem vindo a enredar a partidarite lusitana levou a que renascesse o tradicional conflito entre a política e a religião, que parecia sepultado na pós-revolução. Regressou-se assim aos confusos tempo do demoliberalismo e do salazarismo, com o retomar dos fantasmas do congreganismo e do anticongreganismo. Parece que já esquecemos os próprios tempos de institucionalização da democracia, quando o grande partido anticomunista fez com que católicos e laicos convergissem tanto nas manifestações promovidas pelos bispos-condestáveis como nas várias alamedas desencadeadas pelo PS e pelo PPD. No seio do PS e do PSD ainda se misturam maçons e militantes catolaicos, mas quando os ventos de Roma apontam para aquilo que é qualificado como luta contra a ditadura do relativismo, o ambiente interno português, onde ainda não se resolveram questões como a IVG e as uniões de facto, pode ser propício para o regresso aos fantasmas. A questão político-religiosa, disfarçada pelas cláusulas gerais da defesa da vida e da família tradicional, pode levar a que as pulsões reaccionárias traduzam em calão maniqueísta tão complexos valores, com os consequentes equívocos. E tudo se agrava neste ambiente de pequena política, típica do regime dos tarimbeiros, marcado pelo ritmo dos “soundbytes” e de certo fundamentalismo discursivo. Pior do que isso: quando as presentes e futuras lideranças de direita, cedendo à chantagem de certa esquerda, que fabrica as chamadas “causas de direita”, da tal direita que convém à esquerda, as posturas liberais da esquerda da direita e da direita da esquerda, num país pouco habituado à tradicional postura dos radicais do centro, que, por muitos, ainda é confundida com o centrismo equidistante do cobarde rigorosamente ao centro, ambas as atitudes políticas, mais culturais do que políticas, aliás, acabam por dispersar-se entre muitas capelinhas, mais ou menos ortodoxas, mais ou menos estrangeiradas. Aqueles que pretendem manter a antiga, mas não antiquada postura liberal, azul e branca ou republicana, começam assim a perder a possibilidade de intervenção cívica. Basta também recordar como foi instrumentalizada a ideia liberal por certos clubes dos finais da década de oitenta, onde os mais mediáticos de direita se benzeram como democratas-cristão e os mais badalados de esquerda se volveram em sociais-democratas ou socialistas, ao mesmo que, pela via da importação, começaram a pulular muitos grupos neoliberais que costumam rivalizar entre si, conforme os encontros imediatos de pretenso primeiro grau que cada um deles tem com certas universidades ou certos clubes de fans de alguns autores. A própria inelasticidade do sistema político-partidário, bem como os erros cometidos por alguns projectos, para não falar na falta de apoio popular, levam a que a institucionalização de tal família política tenha que continuar adiada por mais alguns ciclos políticos.
Daily Archives: 23 de Abril de 2005
Elementos para uma teoria dos tumores de micro-autoritarismo
Ainda há instituições que continuam a ser espaços infradomésticos de falso paternalismo, porque ingloriamente dependentes de certos capatazes e dos respectivos fiéis. E nesse universo de cinzentismo pós-totalitário, quem se assume da oposição quase parece que comete um pecado, porque os donos e senhores da coisa logo dizem que monopolizam o conceito de bem institucional, considerando os divergentes como dissidentes a abater. E assim podem sobreviver, para além do prazo de validade, sistemas imperiais de gestão, marcados pela arendtiana categoria do governo dos espertos, onde se manipula a legalidade, conforme o uso que dela podem fazer os espiões da Razão de Estado. Os quais nem sequer alguma vez compreederam o mínimo denominador comum da civilização do Estado de Direito. Seguindo o manual de organização política e administrativa da nação, com que se formatavam os chefes de repartição do “ancien régime”, tais ilustres autocratas conseguiram continuar a medrar neste sistema de formal democracia pluralista e competitiva, só porque instrumentalizaram o processo do anticomunismo e de luta contra os excessos do PREC, gerando tumores de micro-autoritarismo. Estes, florescentes em épocas de transição, vão continuando a germinar pela podridão das sucessivas inércias e até pelas descaradas coberturas de alguma partidarite, que os ditos cujos usam e deitam fora, conforme as conveniências. Não falta sequer o recurso às próprias pompadours, bem como uma espécie de actualização da pretensa conspiração de avós e netos, com esbirros desempregados a tentarem a junção da brigada do reumático dos gerontes com a rapazida dos novos eme-erres. Há também alguns inimputáveis, sempre temendo a chegada dos justos cobradores de fraque, bem como uma certa legião de cordeiros amansados pelo temor e falta de espinha, aquela moluscular base de recrutamento para a inevitável vindicta dos “days after”, quando as peles da fingida doçura hipócrita, com que fingem obediência, não conseguirem recobrir as inevitáveis unhas aguçadas da revolta dos PREC. O vale-tudo da opressão sempre gerou o incontrolável das libertações das molas oprimidas, quando estas se partem e emerge um poder à solta, inversamente proporcional, em revolta contra a frieza cinzenta da opressão concentracionária. A cultura da dependência, gerada pela estreiteza de vistas do paroquialismo balofo e pelo charlatanismo dos piratas com chapéu de coco, que confundem a palavra com a demagogia, apenas afina o delírio de um carreirismo cobarde. Acresce que tudo se pode agravar quando as ondas do reviralho se reduzem a péssimas alternativas oposicionistas, permitindo que a comparação com o mau do situacionismo leve a que se opte pelo regime dito “do mal, o menos”. Com efeito, o facciosismo e aventureirismo podem acabar por enclausurar o sistema, agravando a loucura despótica e concentracionária, hábil na manipulação da teoria conspiratória do “Anticristo” e do “Gegenreich”. Mas não há mal que sempre dure nem falso bem que não acabe por ser desmascarado, principalmente quando o niilismo crepuscular faz com que os sistemismos situacionistas acabem por cair de pôdres. Especialmente quando o hossana desafina já sem altura os conspurcadores nem sequer conseguem vestir-se com a mentira dos anjinhos papudos…