Monthly Archives: Janeiro 2006
Serey pay dos pobres, e de quem não tem quem faça por elles
Ao consultar os almanaques e a minha base de dados, descobri que hoje se misturam efemérides contraditórias. Primeiro, nasceu em 1554 o senhor D. Sebastião, John Kennedy tomou posse como presidente das “novas fronteiras” em 1961 e Amílcar Cabral foi assassinado em Conakry. Por isso, não vou fazer o balanço da campanha presidencial e da procura que continuamos a fazer de um qualquer messias, mesmo que seja um regresso. Vou falar em Sebastião, ele próprio.
Pouco interessa que D. Sebastião, nascido em 20 de Janeiro de 1554, bem depois da primeira emissão das Trovas de Bandarra, não tenha correspondido ao perfil do rei visionado pelo posterior sebastianismo. Ele apenas tentou viver como lhe ensinaram a pensar, apenas tentou levar à prática a teoria então dominante entre pensadores da Corte, principalmente entre os confessores e os aios. Ele que podia equivaler-se a um Infante D. Henrique se a respectiva conquista de Ceuta, chamada Alcácer-Quibir, não se gorasse, parecia não possuir o jeito da governação das coisas práticas, não se assumindo como o gestor de uma grande companhia como era a Ordem de Cristo, nem revelando a ganância daquele que procurava juntar monopólios de comércio.
Era também o exacto contrário do tio Cardeal que, esse, sim, representava a síntese entre os respectivos pai e irmão, isto é, entre D. Manuel I e D. João III. D. Sebastião, com efeito, tinha muito do estilo cavaleiresco de D. Afonso V, mas, ao contrário deste, nunca teve um príncipe D. João a cobrir-lhe a rectaguarda da governação ou a levar-lhe o apoio militar em caso de campanha militar de sorte mais duvidosa. Acresce que o próprio reino já não possuía aquele grau de saudável unidade que se manifestava cem anos antes.
Será, contudo, fácil transformar a pessoa do rei morto e derrotado num bode expiatório. Culpa começou por ter toda a comunidade quando nele depositou todas as esperanças chamando-lhe maravilha fatal da nossa idade e dando-lhe sonho demais para gerir um aparelho de poder dominado pela frieza de um cálculo estratégico. A comunidade exigia-lhe impulso para a augmentação quando o que estava em causa era sobretudo gestão e defensão. Teve, portanto, a loucura de querer viver como pensava. O erro esteve, pois, não no viver, mas no pensar e no sonhar. No ousar o impossível quando se impunha a arte do possível, isto é, o abandono das praças africanas e a procura de alianças no concerto na balança de poderes.
Por isso não seguiu os conselhos do Cardeal, as avisadas palavras de D. Jerónimo Osório ou, no momento final, a fortaleza de capitães como Cristóvão de Távora que lhe sugeriram um recuo. Ousou ser falcão em tempo de coruja, não querendo entender que, em determinados momentos, importa que nos submetamos para podermos sobreviver, a fim de renascer aquele vivo que deve lutar para continuar a viver. O exagero de D. Sebastião terá, depois, o exacto contrário no Cardeal-Rei, que não governava como pensava, quando não teve força física e anímica para escolher o sucessor que no íntimo da coerência autonomista, de certo, acalentava, D. Catarina de Bragança, permitindo que o partido de D. Catarina de Áustria acabasse por vencer, através de Cristóvão de Moura.
O Cardeal-Rei não foi, aliás, rigoroso na leitura do nosso direito constitucional, praticando uma inconstitucionalidade por omissão de vontade. E foi essa ausência de intervencionismo real que levou à chamada perda da independência. Atingia-se o clímax de um vazio de rei, tendo colmatado a lacuna o absolutismo colectivista de uma classe política predominante, a da Corte. Sobretudo, num momento em que esse espaço do político estava ocupado pela facção dos Áustrias, enquanto os opositores cometiam o erro de apoiar D. António e de assim cair na ratoeira dos apoios franceses.
Gerou-se deste modo o atrofiamento da nossa vitalidade, quando se impediu a hipótese da república poder manifestar a respectiva vontade permitindo-se a ascensão daquele influente que, invocando a espada e o tesouro, tratou de ocupar o centro político.
Depois de Alcácer-Quibir, o velho partido autonomista, representado pelo Cardeal D. Henrique, com o apoio de Frei Bartolomeu dos Mártires, D. Jerónimo Osório, Diogo de Couto e Pedro Barbosa, está apertado entre os que alinham com Cristóvão de Moura e os que, com Febo Moniz, nos termos da prática de 13 de Janeiro de 1580, quando o Cardeal-Rei teve uma entrevista com os procuradores do primeiro banco, querem resistir, não extinguir a nação, conservando este reino na liberdade em que os reis (… ) antepassados (… ) o fizeram.
Só que, como observa Costa Lobo, Filipe II, relativamente a D. João I de Castela, tinha mais quatro reinos só na península ibérica, além de Nápoles, da Sicília, de Milão, do Franche-Comté, dos Países Baixos e das Américas. Tinha o papa e o Imperador da Alemanha como aliados e não temia nem uma França, ainda dividida por guerras religiosas nem uma Inglaterra a recompor-se da sua ruptura com Roma… Tinha com ele não só a força das armas e do dinheiro, como também algum direito resultante daquele jogo das alianças dinásticas com que a dinastia de Avis se envolvera com Castela, com D. Afonso V, D. João II, D. Manuel e D. João III.
Tinha havido Aljubarrota, contra o perigo castelhano, tal como depois iria suceder Toro, contra o perigo português. Afonso V, o derrotado de Toro, era bisneto de D. Juan I de Castela. Isabel I, de Castela, a vencedora de Toro, era bisneta de D. João I, o vencedor de Aljubarrota. D. João II havia casado o príncipe D. Afonso com Isabel, filha dos Reis Católicos. D. Manuel I, casando com a viúva de D. Afonso, fez jurar o filho D. Miguel da Paz, como herdeiro dos dois tronos. Carlos V casa com D. Isabel, filha de D. Manuel I e, do consórcio, nasce Filipe II. D. João III casa com D. Catarina, irmã de Carlos V e tia de Filipe II. O filho de D. João III, D. João, casa com D. Joana, filha de Carlos V e desta união resulta D. Sebastião. Filipe II é descendente dos vencedores de Aljubarrota e de Toro. Tão geneticamente Avis quanto Habsburgo. Malhas que a genealogia foi tecendo…
Nas Cortes de Tomar de 1581, Filipe II mais não faz do que repetir as Declarações del-Rei D. Manuel, de como se havia de governar o Reyno de Portugal, depois que o Principe seu filho, que herdava Castella, succedesse naquelles Reynos, onde pode ler-se: a principal couza (… ) he que o dito Principe meu filho, e os que depois delle vierem, governem as couzas destes Reynos por officiaes delles, e que a elles todallas couzas delles encomendem, e nom a extranjeiros, que non sabem os costumes da terra, nem se podem tam bem conformar com os outros naturaes delles. Nestes termos, determinava que quando quer que o dito princepe meu filho, ou qualquer dos seus herdeiros, vier a estes Reynos que, logo que nelles entrar, todollos officiaes de Castella e Aragam que trouxer deixem as varas da justiça que trouxerem, e as tomem os officiaes Portuguezes, e nenhum outro official extrangeiro tenha juridiçam em couza alguma, em quanto em Portugal estiver, salvo que os do seu Conselho e officiaes de Castella e de Aragam possam entender nos negocios e couzas que dos ditos Reynos vierem.
Mas como observava Garcia de Resende na sua Miscelânea: Vimos Portugal, Castela, / quatro vezes ajuntados, / Por casamentos liados/ Príncipe natural d’ella / que erdava todos reynados. /Todos vimos falecer / em breve tempo morrer / e nenhum durar três annos. / Portugueses castelhanos, / não os quer Deus juntos ver.
Portugal transformara-se num país sem rei nem lei. Um rei que não se perdera apenas em Alcácer Quibir, mas, sobretudo, quando, durante as regências de D. Catarina e do Cardeal D. Henrique, o poder supremo se fragmentou em facções que propiciaram um vazio de ideias que a força das relações internacionais acabou por invadir. Uma lei que se tornou inautêntica quando, por acção e omissão, se desrespeitaram as leis fundamentais que constituíam a base da legitimidade da dinastia de Avis, nomeadamente o apelo às cortes em momentos excepcionais.
O poder real que na Idade Média conseguira a unidade na diversidade de um regime misto, reforçado em 1385 e não desfeito com D. João II, dilui-se, na sequência da morte de D. João III, quando se transformou num mero lugar de confusão de poderes, onde regentes, Consejos, validos e confessores, enredados em disputas de etiqueta e mercês, perderam a representatividade e não respeitaram os limites que constituíam a sua própria natureza. Em vez dos três estados em Cortes Gerais, emerge a dissolução da Corte.
A família real dividiu-se, a nobreza fragmentou-se, a Igreja esboroou-se, e cada uma das facções inventou um bode expiatório e recorrendo a aliados externos, de Filipe II ao próprio Papa. A bissectriz de todo esse paralelograma de forças chamou-se D. Sebastião, O Desejado. Queriam que fosse a segurança da lusitana antiga liberdade. Mas apenas lhe deram jesuítas contra todas as outras ordens, nobreza contra nobreza, e avó contra tio-avô.
Toda a anterior literatura sobre a educação de príncipes era agora desafiada pela realidade de uma criança que, aos três anos, fora feito rei, com o pai morto antes dele nascer e com a mãe a largá-lo a uma classe política sem o norte do bem comum. Portugal terá um rei educado por uma espécie de laboratório construído por teorias. Em vez de um pai e de uma mãe, deram-lhe aios, do velho soldado D. Aleixo de Meneses a Febo Moniz, confessores como o jesuíta Luís Gonçalves da Câmara, e mestres, como o cosmógrafo-mar Pedro Nunes.
Aos catorze anos de idade, o jovem rei já assume a governança sem nunca ter sido menino, numa altura em que a comunidade lhe pede que surja um novo reino com as virtudes dos antigos portugueses. Apesar de tudo, D. Sebastião ainda tentará cumprir aquele programa de consta de um memorial escrito pelo seu próprio punho antes de tomar o governo do Reyno. Tentará viver como pensava, sem pensar como vivia. Tentará transformar a carcaça corrompida do velho reino num reino adolescente: Trabalharey muito por dilatar a Fé. Favorecerey muito as cousas da Igreja. Armar todo o Reyno. (… ) Não crer levemente, e ouvir sempre ambas as partes (… ) Conquistar, e povoar a Índia, Brasil, Angola e Mina (… ) Reformar os costumes começando primeiro por mim no vestir, e comer. Em negocios ter primeiro conta com o bem comum, e depois com os particulares(… ) As leys que fizer, mostrallas primeiro a homens de virtude e letras para que me apontem os incovenientes que tiverem. Levar os subditos por amor (…) Serey pay dos pobres, e de quem não tem quem faça por elles.
No fundo, quer ser El Hombre, quer retomar D. João II e por isso, em cerimónia junto do túmulo aberto daquele seu antecessor, embora não ascendente, proclama: Este foi o maior oficial que houve do nosso ofício. Este é o meu rei, este é o meu rei.
É um tempo de apocalipse com os cavaleiros da fome, da peste e da guerra. Fenómenos naturais como tremores de terra, são vistos como castigo de Deus. Em 1531, em Santarém, Gil Vicente teve que fazer uma pregação contra os frades que ligaram o terramoto então ocorrido à permanência em Portugal dos judeus. Em 19 de Abril de 1506, o simples reflexo do sol num crucifixo da Igreja de S. Domingos, qualificado por um cristão novo como mero reflexo de uma vela, leva a que aos gritos de Heresia! Heresia!, saídos de dois frades dominicanos, a populaça, apoiada por marinheiros nórdicos, desencadeie um pogrom com um saldo de dois milhares de chacinados judeus. Cometas são vistos como sinais de Deus. Chegáramos à Índia, conquistáramos as Américas, circum-navegáramos a Terra, mas, na Europa, dividida entre protestantes e católicos, ameaçava o turco e circulavam os judeus.
Nesta pequena casa lusitana, onde em Coimbra e Évora, os próprios teólogos invocavam a razão contra as teses da predestinação do novo agostianismo protestante, neste nosso ninho, onde o experimentalismo e a ciência progrediam, a massa informe de um povo marcado pela história trágico-marítima, enredava-se no providencialismo e retomava os milagres.
Na crise de 1578-1580 as principais forças espirituais portuguesas estão com a faceta de rei natural de Filipe II. Move-as menos a Hispania do que a Cristandade. Sentem que falta uma potência católica na Europa para fazer face tanto ao perigo turco como à ameaça protestante. Entre a aliança com o rei de Espanha, a intervenção dos franceses ou a chamada dos protestantes ingleses, preferem o menor dos males e votam por Filipe II. Mais não fazem do que aquilo que as elites vão fazer com Napoleão através de El Rei Junot. Aquilo que a maçonaria vai fazer com os franceses, a partir de 1806, foi aquilo que a Igreja Católica fez com os espanhóis em 1580. Certo que, depois, ambas as entidades se vão redimir. A Igreja com os alcobacenses e os manuelinhos; a maçonaria com os republicanos, na sequência do ultimatum.
Traidores sempre os houve, principalmente por uma errada interpretação da aliança conveniente no jogo das relações internacionais. Trairam os realistas miguelistas quando cederam aos ditames da Santa Aliança, atarvés de Metternich, Wellington ou Luís XVIII. Traíram os oposicionistas aos salazarismo quando cederam a ditames das internacionais comunistas, socialistas ou liberais, como já antes traíra o salazarismo quando cedeu à moda dos impérios coloniais.
Sempre a tentação de alinhar com outras internacionais ou outras potências em nome de impérios universais. Contudo, em qualquer um dos seus momentos dolorosos, a pátria acaba sempre por retomar a vontade de autonomia, quando os descendentes dos traidores se nacionalizam e sobressai novamente a lusitana antiga liberdade, aquele português antigo de antes quebrar que torcer, aquela mistura de telurismo e oceano que nos faz um português à solta, onde o agricultor vai de caravela pelos mares ou se transforma em bandeirante pelo sertão. Ou, muito principalmente, quando, pela pena, se constrói o poema, cronicando a história ou chamando ensaio à filosofia, aquelas redes que sustentam a imaginação de quem ousou mais além para defender o daquém. Sempre foi assim que, muito cientificamente, fizemos sebastianismo, racionalizando aquilo que anteriormente era um mero fundo imaginativo.
SEREY PAY DOS POBRES, E DE QUEM NÃO TEM QUEM FAÇA POR ELLES
Ao consultar os almanaques e a minha base de dados, descobri que hoje se misturam efemérides contraditórias. Primeiro, nasceu em 1554 o senhor D. Sebastião, John Kennedy tomou posse como presidente das “novas fronteiras” em 1961 e Amílcar Cabral foi assassinado em Conakry. Por isso, não vou fazer o balanço da campanha presidencial e da procura que continuamos a fazer de um qualquer messias, mesmo que seja um regresso. Vou falar em Sebastião, ele próprio.
Por isso não seguiu os conselhos do Cardeal, as avisadas palavras de D. Jerónimo Osório ou, no momento final, a fortaleza de capitães como Cristóvão de Távora que lhe sugeriram um recuo. Ousou ser falcão em tempo de coruja, não querendo entender que, em determinados momentos, importa que nos submetamos para podermos sobreviver, a fim de renascer aquele vivo que deve lutar para continuar a viver. O exagero de D. Sebastião terá, depois, o exacto contrário no Cardeal-Rei, que não governava como pensava, quando não teve força física e anímica para escolher o sucessor que no íntimo da coerência autonomista, de certo, acalentava, D. Catarina de Bragança, permitindo que o partido de D. Catarina de Áustria acabasse por vencer, através de Cristóvão de Moura.
O Cardeal-Rei não foi, aliás, rigoroso na leitura do nosso direito constitucional, praticando uma inconstitucionalidade por omissão de vontade. E foi essa ausência de intervencionismo real que levou à chamada perda da independência. Atingia-se o clímax de um vazio de rei, tendo colmatado a lacuna o absolutismo colectivista de uma classe política predominante, a da Corte. Sobretudo, num momento em que esse espaço do político estava ocupado pela facção dos Áustrias, enquanto os opositores cometiam o erro de apoiar D. António e de assim cair na ratoeira dos apoios franceses.
Gerou-se deste modo o atrofiamento da nossa vitalidade, quando se impediu a hipótese da república poder manifestar a respectiva vontade permitindo-se a ascensão daquele influente que, invocando a espada e o tesouro, tratou de ocupar o centro político.
Depois de Alcácer-Quibir, o velho partido autonomista, representado pelo Cardeal D. Henrique, com o apoio de Frei Bartolomeu dos Mártires, D. Jerónimo Osório, Diogo de Couto e Pedro Barbosa, está apertado entre os que alinham com Cristóvão de Moura e os que, com Febo Moniz, nos termos da prática de 13 de Janeiro de 1580, quando o Cardeal-Rei teve uma entrevista com os procuradores do primeiro banco, querem resistir, não extinguir a nação, conservando este reino na liberdade em que os reis (… ) antepassados (… ) o fizeram.
Só que, como observa Costa Lobo, Filipe II, relativamente a D. João I de Castela, tinha mais quatro reinos só na península ibérica, além de Nápoles, da Sicília, de Milão, do Franche-Comté, dos Países Baixos e das Américas. Tinha o papa e o Imperador da Alemanha como aliados e não temia nem uma França, ainda dividida por guerras religiosas nem uma Inglaterra a recompor-se da sua ruptura com Roma… Tinha com ele não só a força das armas e do dinheiro, como também algum direito resultante daquele jogo das alianças dinásticas com que a dinastia de Avis se envolvera com Castela, com D. Afonso V, D. João II, D. Manuel e D. João III.
Tinha havido Aljubarrota, contra o perigo castelhano, tal como depois iria suceder Toro, contra o perigo português. Afonso V, o derrotado de Toro, era bisneto de D. Juan I de Castela. Isabel I, de Castela, a vencedora de Toro, era bisneta de D. João I, o vencedor de Aljubarrota. D. João II havia casado o príncipe D. Afonso com Isabel, filha dos Reis Católicos. D. Manuel I, casando com a viúva de D. Afonso, fez jurar o filho D. Miguel da Paz, como herdeiro dos dois tronos. Carlos V casa com D. Isabel, filha de D. Manuel I e, do consórcio, nasce Filipe II. D. João III casa com D. Catarina, irmã de Carlos V e tia de Filipe II. O filho de D. João III, D. João, casa com D. Joana, filha de Carlos V e desta união resulta D. Sebastião. Filipe II é descendente dos vencedores de Aljubarrota e de Toro. Tão geneticamente Avis quanto Habsburgo. Malhas que a genealogia foi tecendo…
Nas Cortes de Tomar de 1581, Filipe II mais não faz do que repetir as Declarações del-Rei D. Manuel, de como se havia de governar o Reyno de Portugal, depois que o Principe seu filho, que herdava Castella, succedesse naquelles Reynos, onde pode ler-se: a principal couza (… ) he que o dito Principe meu filho, e os que depois delle vierem, governem as couzas destes Reynos por officiaes delles, e que a elles todallas couzas delles encomendem, e nom a extranjeiros, que non sabem os costumes da terra, nem se podem tam bem conformar com os outros naturaes delles. Nestes termos, determinava que quando quer que o dito princepe meu filho, ou qualquer dos seus herdeiros, vier a estes Reynos que, logo que nelles entrar, todollos officiaes de Castella e Aragam que trouxer deixem as varas da justiça que trouxerem, e as tomem os officiaes Portuguezes, e nenhum outro official extrangeiro tenha juridiçam em couza alguma, em quanto em Portugal estiver, salvo que os do seu Conselho e officiaes de Castella e de Aragam possam entender nos negocios e couzas que dos ditos Reynos vierem.
Mas como observava Garcia de Resende na sua Miscelânea: Vimos Portugal, Castela, / quatro vezes ajuntados, / Por casamentos liados/ Príncipe natural d’ella / que erdava todos reynados. /Todos vimos falecer / em breve tempo morrer / e nenhum durar três annos. / Portugueses castelhanos, / não os quer Deus juntos ver.
Portugal transformara-se num país sem rei nem lei. Um rei que não se perdera apenas em Alcácer Quibir, mas, sobretudo, quando, durante as regências de D. Catarina e do Cardeal D. Henrique, o poder supremo se fragmentou em facções que propiciaram um vazio de ideias que a força das relações internacionais acabou por invadir. Uma lei que se tornou inautêntica quando, por acção e omissão, se desrespeitaram as leis fundamentais que constituíam a base da legitimidade da dinastia de Avis, nomeadamente o apelo às cortes em momentos excepcionais.
O poder real que na Idade Média conseguira a unidade na diversidade de um regime misto, reforçado em 1385 e não desfeito com D. João II, dilui-se, na sequência da morte de D. João III, quando se transformou num mero lugar de confusão de poderes, onde regentes, Consejos, validos e confessores, enredados em disputas de etiqueta e mercês, perderam a representatividade e não respeitaram os limites que constituíam a sua própria natureza. Em vez dos três estados em Cortes Gerais, emerge a dissolução da Corte.
A família real dividiu-se, a nobreza fragmentou-se, a Igreja esboroou-se, e cada uma das facções inventou um bode expiatório e recorrendo a aliados externos, de Filipe II ao próprio Papa. A bissectriz de todo esse paralelograma de forças chamou-se D. Sebastião, O Desejado. Queriam que fosse a segurança da lusitana antiga liberdade. Mas apenas lhe deram jesuítas contra todas as outras ordens, nobreza contra nobreza, e avó contra tio-avô.
Toda a anterior literatura sobre a educação de príncipes era agora desafiada pela realidade de uma criança que, aos três anos, fora feito rei, com o pai morto antes dele nascer e com a mãe a largá-lo a uma classe política sem o norte do bem comum. Portugal terá um rei educado por uma espécie de laboratório construído por teorias. Em vez de um pai e de uma mãe, deram-lhe aios, do velho soldado D. Aleixo de Meneses a Febo Moniz, confessores como o jesuíta Luís Gonçalves da Câmara, e mestres, como o cosmógrafo-mar Pedro Nunes.
Aos catorze anos de idade, o jovem rei já assume a governança sem nunca ter sido menino, numa altura em que a comunidade lhe pede que surja um novo reino com as virtudes dos antigos portugueses. Apesar de tudo, D. Sebastião ainda tentará cumprir aquele programa de consta de um memorial escrito pelo seu próprio punho antes de tomar o governo do Reyno. Tentará viver como pensava, sem pensar como vivia. Tentará transformar a carcaça corrompida do velho reino num reino adolescente:Trabalharey muito por dilatar a Fé. Favorecerey muito as cousas da Igreja. Armar todo o Reyno. (… ) Não crer levemente, e ouvir sempre ambas as partes (… ) Conquistar, e povoar a Índia, Brasil, Angola e Mina (… ) Reformar os costumes começando primeiro por mim no vestir, e comer. Em negocios ter primeiro conta com o bem comum, e depois com os particulares(… ) As leys que fizer, mostrallas primeiro a homens de virtude e letras para que me apontem os incovenientes que tiverem. Levar os subditos por amor (…) Serey pay dos pobres, e de quem não tem quem faça por elles.
No fundo, quer ser El Hombre, quer retomar D. João II e por isso, em cerimónia junto do túmulo aberto daquele seu antecessor, embora não ascendente, proclama: Este foi o maior oficial que houve do nosso ofício. Este é o meu rei, este é o meu rei.
É um tempo de apocalipse com os cavaleiros da fome, da peste e da guerra. Fenómenos naturais como tremores de terra, são vistos como castigo de Deus. Em 1531, em Santarém, Gil Vicente teve que fazer uma pregação contra os frades que ligaram o terramoto então ocorrido à permanência em Portugal dos judeus. Em 19 de Abril de 1506, o simples reflexo do sol num crucifixo da Igreja de S. Domingos, qualificado por um cristão novo como mero reflexo de uma vela, leva a que aos gritos deHeresia! Heresia!, saídos de dois frades dominicanos, a populaça, apoiada por marinheiros nórdicos, desencadeie um pogromcom um saldo de dois milhares de chacinados judeus. Cometas são vistos como sinais de Deus. Chegáramos à Índia, conquistáramos as Américas, circum-navegáramos a Terra, mas, na Europa, dividida entre protestantes e católicos, ameaçava o turco e circulavam os judeus.
Nesta pequena casa lusitana, onde em Coimbra e Évora, os próprios teólogos invocavam a razão contra as teses da predestinação do novo agostianismo protestante, neste nosso ninho, onde o experimentalismo e a ciência progrediam, a massa informe de um povo marcado pela história trágico-marítima, enredava-se no providencialismo e retomava os milagres.
Na crise de 1578-1580 as principais forças espirituais portuguesas estão com a faceta de rei natural de Filipe II. Move-as menos a Hispania do que a Cristandade. Sentem que falta uma potência católica na Europa para fazer face tanto ao perigo turco como à ameaça protestante. Entre a aliança com o rei de Espanha, a intervenção dos franceses ou a chamada dos protestantes ingleses, preferem o menor dos males e votam por Filipe II. Mais não fazem do que aquilo que as elites vão fazer com Napoleão através de El Rei Junot. Aquilo que a maçonaria vai fazer com os franceses, a partir de 1806, foi aquilo que a Igreja Católica fez com os espanhóis em 1580. Certo que, depois, ambas as entidades se vão redimir. A Igreja com os alcobacenses e os manuelinhos; a maçonaria com os republicanos, na sequência do ultimatum.
Traidores sempre os houve, principalmente por uma errada interpretação da aliança conveniente no jogo das relações internacionais. Trairam os realistas miguelistas quando cederam aos ditames da Santa Aliança, atarvés de Metternich, Wellington ou Luís XVIII. Traíram os oposicionistas aos salazarismo quando cederam a ditames das internacionais comunistas, socialistas ou liberais, como já antes traíra o salazarismo quando cedeu à moda dos impérios coloniais.
Sempre a tentação de alinhar com outras internacionais ou outras potências em nome de impérios universais. Contudo, em qualquer um dos seus momentos dolorosos, a pátria acaba sempre por retomar a vontade de autonomia, quando os descendentes dos traidores se nacionalizam e sobressai novamente a lusitana antiga liberdade, aquele português antigo de antes quebrar que torcer, aquela mistura de telurismo e oceano que nos faz um português à solta, onde o agricultor vai de caravela pelos mares ou se transforma em bandeirante pelo sertão. Ou, muito principalmente, quando, pela pena, se constrói o poema, cronicando a história ou chamando ensaio à filosofia, aquelas redes que sustentam a imaginação de quem ousou mais além para defender o daquém. Sempre foi assim que, muito cientificamente, fizemos sebastianismo, racionalizando aquilo que anteriormente era um mero fundo imaginativo.
Quanto mais ao Atlântico a alma falta, com tantos colaboracionistas, mais minha alma atlântica se exalta
No dia em que César atravessou o Rubicão, clamando o “alea jacta est”, mas quarenta e nove anos antes de Cristo, também nasceu Maomé, mas em 570, antes de Ferro Rodrigues ser eleito líder do PS, em 2002, e de em Portugal, o pós-sidonismo entrar em rodopio, com a tomada de posse do governo de José Relvas, o primeiro pós-sidonista, ainda com ministros sidonistas, enquanto no Porto, num acto de força equivalente ao 5 de Outubro de 1910, era estupidamente restaurada a monarquia que apesar de contar com a participação do heróico Paiva Couceiro ou do coerente Luís de Magalhães, antigo ministro progressista e filho de José Estevão, não passou da má memória da Traulitânia, acabando por também ser derrubada em novo acto de força, desta vez com a vitória do audacioso capitão Sarmento Pimentel. E pronto, lá estou eu republicano e monárquico, simpatizando com os dois lados da barricada e recordando que Luís Magalhães será defendido em tribunal por republicanos do 31 de Janeiro e até por Guerra Junqueiro, tal como depois será o monárquico Afonso Lopes Vieira a refugiar em sua casa, durante as perseguições salazaristas, o tal grande Raul Proença que da biblioteca do seu protector e amigo retirará argumentos para escrever um livro antimonárquico. Porque, como diria Dali, anarquista, mas monárquico, tal como São Tomás explicava na sua unidade na diversidade.
Eram todos desta índole lusitana, do tudo e do seu nada, que punha a amizade acime da politiquice, onde o próprio Vieira tinha começado como anarquista tolstoiano, acabando por escrever a letra do 13 de Maio. Julgo que, nessa altura, altos funcionários do Estado não podiam fazer conferências em funções oficiais elogiando publicamente potências estrangeiras e denunciando quem critica as mesmas e exprime opiniões de política interna. Continuavam o exemplo da monarquia liberal que ia buscar ajuda patriótica ao miguelista Visconde de Santarém, tal como a República fará com o monárquico Penha Garcia, sempre em nome de objectivos nacionais permanentes e não com a engenharia do sindicato das citações mútuas. A Inquisição já acabou, Salazar já está debaixo de um calhau e este tipo de cavaquismo que nos ameaça, mesmo que seja de importação freitista ou portista, nunca entenderá um Paiva Couceiro, um dos primeiros exilados pelo salazarismo, um Basílio Teles, um Guerra Junqueiro, um Luís Magalhães, ou um Lopes Vieira, um Raul Proença, um Sarmento Pimentel ou até um Raul Rego que me contou muitas destas histórias.
Assim, quanto mais ao Atlântico a alma falta, com tantos colaboracionistas que se branqueiam, mais minha alma atlântica se exalta. Caso não tivesse alternativas democráticas e patrióticas dos meus companheiros de luta antitotalitária de 1974-1975, juro que preferiria votar em Jerónimo. Tal como o Pessoa, ortónimo, dizia: se houvesse referendo sobre a forma como vestir a cúpula do Estado, ele que era monárquico, para defender a monarquia, teria que votar pela república. Coisa que também farei no próximo domingo. Porque, à maneira de Passos Manuel, também eu quero cercar o trono de instituições republicanas e considero que antes da esquerda e da direita, antes da monarquia e da república, está a pátria.
Prognósticos só no fim do jogo…
Um dos meus heterónimos, o cientista político, veio agora da SIC-Notícias, onde analisou a recta final desta campanha eleitoral, onde tentou dizer que pode acontecer que a sondajocracia não rime com democracia e que, depois da primeira volta, ainda haja uma espécie de liga dos campeões, numa altura em que os campanheiros disputam passeios com capitães de Abril, de Tomé a Beato, ou os cançonetistas animadores de comícios, da Isabel Silvestre ao Sérgio Godinho, incluindo os Rádio Macau e os tradicionais coros alentejanos, onde o “Grândola, vila morena” deixou de ter direitos de exclusivo.
O problema mais importante da política portuguesa não será resolvida com a eleição do novo inquilino de Belém, porque está em causa um sistema fechado que ameaça fazer explodir o regime. Com efeito, até agora vivemos em concerto que ainda não teve conserto, neste equilíbrio entre o bloco central de interesses, dirigido pelo poder banco-burocrático, com ex-ministros ao serviço de multinacionais, e o centrão social dos subsidiodependentes, deste Estado assistencial e pouco meritocrático, onde havia dois terços de beneficiários e que agora ameaçam transformar-se em dois terços de excluídos, como se prenuncia com o anúncio da falência da segurança social ou com o desemprego dos funcionários públicos, a que chamam reforma do Estado, para não falarmos de haver cada vez mais pobres, cada vez mais pobres, e cada vez menos ricos, cada vez menos ricos.
Todo o concerto assentava na barganha política de cerca de um milhão de eleitores que passava do PS para o PSD e vice-versa, o tal pêndulo que, nas últimas legislativas, puniu os filhos de Cavaco Silva, de Durão a Santana, com Portas anexado, e se entregou a Sócrates. O tal eleitorado centrão que nas sondagens têm dito que vota Cavaco, também reforçado com o apoio do eterno eanismo, o tal PRD residual que, agora, em vez de votar Zenha vai votar numa espécie de anti-Soares em figura humana.
Só que as favas podem não estar contadas e a teoria da pescada, que antes de o ser já o era, pode virar-se contra os feiticeiros e a segunda volta ainda é “faisible”, como costumava dizer esse animal politiqueiro que se chamava Mitterrand. Isto é, a esperança de Soares ainda reside na hipótese de Cavaco sofrer o drama de Freitas, quando cerca de 2% do chamado eleitorado de direita preferiu o “sempre fixe” ao actual ministro dos estrangeiros do socratismo.
Daí que Soares tente recuperar os afectos desse espaço de dissidentes da direita não contaminada pelo interesseirismo dos barões endinheirados e dos aparelhismos partidocráticos, recordando muitos que até teve um chefe da casa militar, todo monárquico ostentável. Também Alegre joga na chamada esquerda patriótica e nalguma metapolítica que pode ter alguns efeitos, nessa caça a nichos de mercado eleitoral que, grão a grão, pode levar a algumas revisões da metodologia das sondagens, onde a revolta contra o sistuacionismo governamental pode não ser consequente nas urnas das presidenciais. Finalmente, a resistência de Louçã, Jerónimo e Garcia na focie e martelo das vozes tribunícias pode ser mobilizadora. Portanto, prognósticos só no fim do jogo e que não seja o Diabo a escolher.
Não elevemos ao altar os heróis balzaquianos que apenas agitam verbalmente as quimeras em que queremos acreditar
No dia em que, no ano de 1689, nasceu Montesquieu, um dos tais fundadores da religião secular do Estado de Direito, e em que se comemora o começo da greve revolucionária da Marinha Grande, em 1934, onde a frustrada implantação do soviete local permitiu ao salazarismo liquidar o anarco-sindicalismo da CGT e dar ao PCP o monopólio da resistência operária, tentarei falar de outras coisas mais próximas do eu e das próprias circunstâncias que dele fazem “pensée” face a esse “mouvant”, invocando a minha religião cívica e saudando a ideia de resistência. Direi, em primeiro lugar, que têm sido significativas as manifestações de revolta ortodoxa com que nominativos militantes dos movimentos DPF (Deus, Pátria, Família) e TFP (Tradição, Família, Propriedade) me têm feito chegar, nomeadamente dos que confundem o MM (Movimento Monárquico) com a passada atracção salazarenta ou com a mais recente onda cavaca. Aceito as críticas, respeito-lhes a sensibilidade, não lhes subscrevo o credo, o beija-mão, a prancha, a procissão, o comício e a directiva.
Confesso que, além de tentar ser intelectualmente heterodoxo, sou um desses heréticos, da seita dos velhos-crentes, que escapou às fogueiras tanto da última como da primeira inquisição, incluindo a santa do ofício, dado manter a fidelidade estóica dos homens livres, que livres da finança e dos partidos, sempre foram fiéis às tais raízes greco-romanas a que o cristianismo costuma fazer apelo quando fala em homens de boa vontade. Por outras palavras, tanto não ando pelas derivas iluministas que geraram o agnosticismo, o progressismo, a utopia, a ideologia ou a revolução, como não frequento as feiras, ou alas, esotéricas que resistem à sexta-feira, dia treze, apesar de respeitar a memória templária, em nome de D. Dinis, e a Ordem de Cristo, em nome das caravelas do infante-grão-mestre.
Dizem, aliás, os especialistas em genealogia, que alguns genes de meus ancestrais padecem de pouca limpeza de sangue, porque, apesar da dominante moçárabe e cristã-velha em que se diluíram, eles derivam, como demonstra meu patronímico, de uma mestiçagem estrangeirada e ultra-mediterrânica de certo exotismo emigrante, já plenamente nacionalizado, tanto pela terra e pelos seus mortos, como pela comunidade de sonhos que a ideia alexandrina de império, com pluralidade de pertenças, tem permitido.
E é por esta geometria variável de afectos que continuo a subscrever o sonho daquele Portugal universal que nos levou ao tal abraço armilar que sempre foi reproduzir-nos em sucessivas pátrias de novos mundos a criar, diluindo-nos em todos os outros. Gostava de continuar a ser vagamundo do português à solta, sempre a varar as tormentas, com o objectivo de, global e planetariamente me circum-navegar, para descobrir que serei sempre um pedaço do transcendente situado.
E tudo medito ao raiar da aurora deste dia dezoito do mês primeiro do anos de dois mil e seis, na precisa data em que a minha escola comemora o seu centenário, magnificamente abrilhantado, logo, ao começo da tarde, com notáveis discursos de convidantes e convidados, com os quais me solidarizo.
E como as cerimónias contarão com a honrosa presença tanto dos altíssimos representantes da governação do Estado, como das não menos altas esferas da federação a que chamamos universidade, apenas recordo que nela nos integrámos apenas há pouco menos de meio século, até porque a dita só nasceu depois das partes que a integram, há três quartos de século. Logo, mais não tenho do que congratular-me com o vivório da missa laica institucional.
Mas porque todas as instituições continuam a ser mistérios e para poder continuar a ser fiel à perspectiva heterodoxa dos fundadores, que não são propriamente os subscritores do real decreto que instituiu a coisa, nem os pretensos criadores que, depois, a tentaram transformar em criatura, decidi, em nome da lealdade básica, não comparecer ao acto. Coisa que formalmente comuniquei a quem considerei que devia, como mero gesto simbólico de quem continua à espera que a instituição largue o lastro daquela razão de Estado que a fez escola de regime e reconheça os atentados à liberdade de cátedra e à militância dos homens livres que, em outras horas, de outros tempos, foi obrigada a cometer. Mais uma vez não quero ser homem de Corte. Prefiro continua a ter um só rosto e um só parecer.
Até porque também não participarei, pelas mesmas razões, no próximo cerimonial que elevará à dimensão da comendadoria, a atribuir pelo ritual do Estado de Direito, quem nunca respeitou a própria alma do Estado de Direito, coisa que considero sagrada na minha religião secular do civismo. Quero apenas dizer que não costumo vender a alma ao Diabo, mesmo quando este julga que o hábito e o penduricalho fazem o monge. Haverá cada vez menos tempo para elevarmos ao altar os heróis balzaquianos que apenas agitam verbalmente as quimeras em que queremos acreditar, através de verbais exercícios de salão e sedução, como ainda há dias li de alguém, a respeito de um lugar paralelo, ocupado em França pela memória de Mitterrand. E para terminar, aqui vai citação de almanaque, de outro nasceu neste mesmo dia, Alan Alexander Milne:”uma das vantagens de ser desarrumado é que se está sempre a fazer descobertas fantásticas…”
Herético, da seita dos velhos crentes
Confesso que, além de tentar ser intelectualmente heterodoxo, sou um desses heréticos, da seita dos velhos-crentes, que escapou às fogueiras tanto da última como da primeira Inquisição, incluindo a santa do ofício, dado manter a fidelidade estóica dos homens livres, que livres da finança e dos partidos, sempre foram fiéis às tais raízes greco-romanas a que o cristianismo costuma fazer apelo quando fala em homens de boa vontade. Por outras palavras, tanto não ando pelas derivas iluministas que geraram o agnosticismo, o progressismo, a utopia, a ideologia ou a revolução, como não frequento as feiras, ou alas, esotéricas que resistem à sexta-feira, dia treze, apesar de respeitar a memória templária, em nome de D. Dinis, e a Ordem de Cristo, em nome das caravelas do infante-grão-mestre. Dizem, aliás, os especialistas em genealogia, que alguns genes de meus ancestrais padecem de pouca limpeza de sangue, porque, apesar da dominante moçárabe e cristã-velha em que se diluíram, eles derivam, como demonstra meu patronímico, de uma mestiçagem estrangeirada e ultra-mediterrânica de certo exotismo emigrante, já plenamente nacionalizado, tanto pela terra e pelos seus mortos, como pela comunidade de sonhos que a ideia alexandrina de império, com pluralidade de pertenças, tem permitido. E é por esta geometria variável de afectos que continuo a subscrever o sonho daquele Portugal universal que nos levou ao tal abraço armilar que sempre foi reproduzir-nos em sucessivas pátrias de novos mundos a criar, diluindo-nos em todos os outros. Gostava de continuar a ser vagamundo do português à solta, sempre a varar as tormentas, com o objectivo de, global e planetariamente me circum-navegar, para descobrir que serei sempre um pedaço do transcendente situado. Até porque também não participarei, pelas mesmas razões, no próximo cerimonial que elevará à dimensão da comendadoria, a atribuir pelo ritual do Estado de Direito, quem nunca respeitou a própria alma do Estado de Direito, coisa que considero sagrada na minha religião secular do civismo. Quero apenas dizer que não costumo vender a alma ao Diabo, mesmo quando este julga que o hábito e o penduricalho fazem o monge. Haverá cada vez menos tempo para elevarmos ao altar os heróis balzaquianos que apenas agitam verbalmente as quimeras em que queremos acreditar, através de verbais exercícios de salão e sedução, como ainda há dias li de alguém, a respeito de um lugar paralelo, ocupado em França pela memória de Mitterrand. E para terminar, aqui vai citação de almanaque, de outro nasceu neste mesmo dia, Alan Alexander Milne:”uma das vantagens de ser desarrumado é que se está sempre a fazer descobertas fantásticas…”
Farpas
No dia em que nasceu Montesquieu e em que se comemora o começo da greve revolucionária da Marinha Grande, em 1934, onde a frustrada implantação do soviete local permitiu ao salazarismo liquidar o anarco-sindicalismo da CGT e dar ao PCP o monopólio da resistência operária, tentarei falar de outras coisas mais próximas do eu e das próprias circunstâncias que dele fazem “pensée” face a esse “mouvant”. Direi, em primeiro lugar, que têm sido significativas as manifestações de revolta ortodoxa com que nominativos militantes dos movimentos DPF (Deus, Pátria, Família) e TFP (Tradição, Família, Propriedade) me têm feito chegar, nomeadamente dos que confundem o MM (Movimento Monárquico) com a passada atracção salazarenta ou com a mais recente onda cavaca. Aceito as críticas, respeito-lhes a sensibilidade, não lhes subscrevo o credo, o beija-mão, a prancha, a procissão e a directiva.
Confesso que, além de tentar ser intelectualmente ortodoxo, sou um desses heréticos, da seita dos velhos-crentes, que escapou às fogueiras tanto da última como da primeira inquisição, incluindo a santa do ofício, dado manter a fidelidade estóica dos homens livres, que livres da finança e dos partidos, sempre foram fiéis às tais raízes greco-romanas a que o cristianismo costuma fazer apelo quando fala em homens de boa vontade. Por outras palavras, tanto não ando pelas derivas iluministas que geraram o agnosticismo, o progressismo, a utopia, a ideologia ou a revolução, como não frequento as feiras, ou alas, esotéricas que resistem à sexta-feira, dia treze, apesar de respeitar a memória templária, em nome de D. Dinis, e a Ordem de Cristo, em nome das caravelas do infante-grão-mestre.
Dizem, aliás, os especialistas em genealogia, que alguns genes de meus ancestrais padecem de pouca limpeza de sangue, porque, apesar da dominante moçárabe e cristã-velha em que se diluíram, eles derivam, como demonstra meu patronímico, de uma mestiçagem estrangeirada e ultra-mediterrânica de certo exotismo emigrante, já plenamente nacionalizado, tanto pela terra e pelos seus mortos, como pela comunidade de sonhos que a ideia alexandrina de império, com pluralidade de pertenças, tem permitido.
E é por esta geometria variável de afectos que continuo a subscrever o sonho daquele Portugal universal que nos levou ao tal abraço armilar que sempre foi reproduzir-nos em sucessivas pátrias de novos mundos a criar, diluindo-nos em todos os outros. Gostava de continuar a ser vagamundo do português à solta, sempre a varar as tormentas, com o objectivo de, global e planetariamente me circum-navegar, para descobrir que serei sempre um pedaço do transcendente situado.
E tudo medito ao raiar da aurora deste dia dezoito do mês primeiro do anos de dois mil e seis, na precisa data em que a minha escola comemora o seu centenário, magnificamente abrilhantado, logo, ao começo da tarde, com notáveis discursos de convidantes e convidados, com os quais me solidarizo. E como as cerimónias contarão com a honrosa presença tanto dos altíssimos representantes da governação do Estado, como das não menos altas esferas da federação a que chamamos universidade, apenas recordo que nela nos integrámos apenas há pouco menos de meio século, até porque a dita só nasceu depois das partes que a integram, há três quartos de século. Logo, mas não tenho do que congratular-me com o vivório da missa laica institucional.
Mas porque todas as instituições continuam a ser mistérios e para poder continuar a ser fiel à perspectiva heterodoxa dos fundadores, que não são propriamente os subscritores do real decreto que instituiu a coisa, nem os pretensos criadores que, depois, a tentaram transformar em criatura, decidi, em nome da lealdade básica, não comparecer ao acto. Coisa que formalmente comuniquei a quem considerei que devia, como mero gesto simbólico de quem continua à espera que a instituição largue o lastro daquela razão de Estado que a fez escola de regime e reconheça os atentados à liberdade de cátedra e à militância dos homens livres que, em outras horas, de outros tempos, foi obrigada a cometer. Mais uma vez não quero ser homem de Corte. Prefiro continua a ter um só rosto e um só parecer.
Até porque também não participarei, pelas mesmas razões, no próximo cerimonial que elevará à dimensão da comendadoria, a atribuir pelo ritual do Estado de Direito, a quem nunca respeitou a própria alma do Estado de Direito. E porque o considero sagrado, na minha religião secular do civismo, quero dizer que não costumo vender a alma ao Diabo, mesmo quando este julga que o hábito e o penduricalho fazem o monge. Haverá cada vez menos tempo para elevarmos ao altar os heróis balzaquianos que apenas agitam verbalmente as quimeras em que queremos acreditar, através de verbais exercícios de salão e sedução, como ainda há dias li de alguém, a respeito de um lugar paralelo, ocupado em França pela memória de Mitterrand.
E pátria não é apenas a ideologia que justifica ou a utopia que subverte
O meu heterónimo não blogueiro nem professoral diz-me que fui ontem ao “Prós e Contras” da RTP discutir a dita “alma da nação”, que tanto pode ser a “alma nacional” da revista republicana de António José de Almeida, surgida em 1910, como as contemporâneas “alma lusitana” de Teixeira de Pascoaes, ou a pré-integralista e ultra-monárquica “alma portuguesa”, nascida pouco depois no exílio belga. Não sei propriamente o que fui dizendo, mas sei aquilo que quis dizer.
Podia dizer galo de Barcelos, bacalhau, sardinha assada, esfera armilar, figo, ronaldo, fado, salazar, amália, madre-de-deus, pastorinhos de fátima, vasco da gama, camões ou henrique o navegador. Podia falar dos filmes do pátio das cantigas ou da aldeia da roupa branca, acrescentar saramago, egas moniz ou fernando pessoa, mulheres de xaile negro, bois puxando abrcos e ala-arriba, com praias douradas e mourinho, referir heróis e literatos, feitiço do império, areais de alcácer, desejado e derrotas, como a de 1578-1580, terramoto, invasões francesas, guerra civil, independência do brasil, ultimato, la lys, guerra colonial ou descolonização, inquisição, magriços, eusébio de benfica bicampeão europeu. Disse que um povo era uma comunidade de significações partilhadas, que uma pátria era uma comunhão em torno das coisas que se amam, que a autonomia é a soma da memória com os valores e que o verdadeiro poder político era um complexo de práticas materiais e simbólicas destinadas à produção do consenso.
Porque estamos em zona daquilo que Pessoa qualificava como misticismo, onde entra o sentimento, a tal inteligência do desejo, “onde quem não pode observar, crê. Onde quem não pode calcular adivinha. E onde quem não pode pôr à prova profetiza. Porque aqui a poesia é mais verdadeira do que a história. E a história imaginada mais activa do que a história objectiva. Porque os povos todos fabricam uma representação histórica da sua própria personalidade, para justificarem a existência de comunidades de sonhos.
Porque as pátria têm raízes no passado, no chão moral da história e as boas nações são apenas escolas futuras da super-nação futura. Porque, continuando pessoanamente, importa o tudo pela Humanidade e o nada contra a Nação. Porque muito cassirermente, hão o símbolo, ou a cultura, as tais significaçãoes que ultrapassam a coisa e que iluminam os corpos políticos. O mito, a língua, a arte, a história. E pátria não é apenas a ideologia que justifica ou a utopia que subverte a ordem estabelecida, mas a terceira potência da alma, a imaginação, que vai além da razão e da vontade. Porque o tal imaginário, o tal símbolo, atravessa o discurso racional, ordena o seu simbolismo e subverte a pretensa lógica. E lá fui doutoral, muito Cassirer, Pessoa, Castoriadis, Voegelin, Ricoeur, Maritian, Duverger, Deutsch, onde apenas tentei parecer aquilo que sou, mostrando viver como penso.
Que hoje, no dia em que morreu Miguel Torga, em 1995, bastaria um poema deste para se confirmar que a poesia é mais verdadeira do que a história. Porque os símbolos são mais reais do que aquilo que simbolizam (Lévi-Strauss), porque toda a razão tem um horizonte sobredeterminado por uma crença, havendo um ponto onde o racional comunica com o mítico (Ricoeur), porque os símbolos fazem parte integrante da realidade nacional(Voegelin), porque devemos dimitificar o mito, mas não fazer da demitificação um mito (Morin). Porque quando penso que penso não sou apenas eu que penso, mas os que pensaram antes de mim, para que eu me sinta pequena onda de uma corrente que me ultrapassa, para continuarmos a fazer história, mas sem sabermos que história vamos fazendo.
Da alma da nação. Na RTP1
Fui publicamente discutir a dita “alma da nação”, que tanto pode ser a “alma nacional” da revista republicana de António José de Almeida, surgida em 1910, como as contemporâneas “alma lusitana” de Teixeira de Pascoaes, ou a pré-integralista e ultra-monárquica “alma portuguesa”, nascida pouco depois no exílio belga. Não sei propriamente o que fui dizendo, mas sei aquilo que quis dizer. Podia dizer galo de Barcelos, bacalhau, sardinha assada, esfera armilar, figo, ronaldo, fado, Salazar , amália, madre-de-deus, pastorinhos de fátima, vasco da gama, camões ou henrique o navegador. Podia falar dos filmes do pátio das cantigas ou da aldeia da roupa branca, acrescentar saramago, egas moniz ou Fernando Pessoa, mulheres de xaile negro, bois puxando abrcos e ala-arriba, com praias douradas e mourinho, referir heróis e literatos, feitiço do império, areais de alcácer, desejado e derrotas, como a de 1578-1580, terramoto, invasões francesas, guerra civil, independência do brasil, ultimato, la lys, guerra colonial ou descolonização, Inquisição, magriços, eusébio de benfica bicampeão europeu. Disse que um povo era uma comunidade de significações partilhadas, que uma pátria era uma comunhão em torno das coisas que se amam, que a autonomia é a soma da memória com os valores e que o verdadeiro poder político era um complexo de práticas materiais e simbólicas destinadas à produção do consenso. Porque estamos em zona daquilo que Pessoa qualificava como misticismo, onde entra o sentimento, a tal inteligência do desejo, “onde quem não pode observar, crê. Onde quem não pode calcular adivinha. E onde quem não pode pôr à prova profetiza. Porque aqui a poesia é mais verdadeira do que a história. E a história imaginada, mais activa do que a história objectiva. Porque os povos todos fabricam uma representação histórica da sua própria personalidade, para justificarem a existência de comunidades de sonhos. Porque as pátria têm raízes no passado, no chão moral da história e as boas nações são apenas escolas futuras da super-nação futura. Porque, continuando pessoanamente, importa o tudo pela Humanidade e o nada contra a Nação. Porque muito cassirermente, hão o símbolo, ou a cultura, as tais significaçãoes que ultrapassam a coisa e que iluminam os corpos políticos. O mito, a língua, a arte, a história. E pátria não é apenas a ideologia que justifica ou a utopia que subverte a ordem estabelecida, mas a terceira potência da alma, a imaginação, que vai além da razão e da vontade. Porque o tal imaginário, o tal símbolo, atravessa o discurso racional, ordena o seu simbolismo e subverte a pretensa lógica. E lá fui doutoral, muito Cassirer, Pessoa, Castoriadis, Voegelin, Ricoeur, Maritain, Duverger, Deutsch, onde apenas tentei parecer aquilo que sou, mostrando viver como penso. Que hoje, no dia em que morreu Miguel Torga, em 1995, bastaria um poema deste para se confirmar que a poesia é mais verdadeira do que a história. Porque os símbolos são mais reais do que aquilo que simbolizam (Lévi-Strauss), porque toda a razão tem um horizonte sobredeterminado por uma crença, havendo um ponto onde o racional comunica com o mítico (Ricoeur), porque os símbolos fazem parte integrante da realidade nacional(Voegelin), porque devemos dimitificar o mito, mas não fazer da demitificação um mito (Morin). Porque quando penso que penso não sou apenas eu que penso, mas os que pensaram antes de mim, para que eu me sinta pequena onda de uma corrente que me ultrapassa. Para continuarmos a fazer história, mas sem sabermos que história vamos fazendo.