Contra algumas más interpretações retroactivas do anticlericalismo e do laicismo
Em anexo, algumas provas de registos esquecidos (1820-1918), bem como uma lista de inapagáveis que fundaram o ar livre que todos respiramos
Por José Adelino Maltez
I
O processo de reconstrução de um modelo racional-normativo de Estado no Portugal Contemporâneo foi sempre ensombrado por sucessivos conflitos entre a política e a religião, sem que se tenha conseguido a necessária aliança entre o humanismo laico, ou, melhor dito, de obediência maçónica, e o humanismo cristão, ou, mais dilectamente dito, de apologética católica, quando bastaria recordar o sincretismo da própria restauração da Europa no século XIII, numa altura em que a autonomia das cidades e dos reinos beneficiou da cristianização dos clássicos do estocismo, trazido pelos árabes, judeus e por Bizâncio, para o seio da nascente universidade, quando ela ainda era studium generale e universitas scientiarum, restauradora da academia de Platão ou do liceu de Aristóteles, com complexa ratio studiorum, na linha da que sonhou mestre Leonardo Coimbra e os seus discípulos da Renovação Democrática.
Apesar de, no presente regime, se ter atingido algum grau de consensualidade, mas quase clandestina, e com algumas fúrias proibicionistas quanto a locais de comunhão de locais sagrados, mesmo em hora de tolerância pela morte, falta ainda enfrentarmos, sem fantasmas congreganistas e sem complexos anticongreganistas, uma leitura pluralista e desinibida, capaz de compreender a pluralidade de pertenças de uma cidadania de homens livres, incluindo os que são livres dos partidos e da finança, (para citar a epígrafe da revista portuguesa de 1925, fundada por Afonso Lopes Vieira e António Sérgio), onde uma saudável relação entre os que se qualificam como povo de Deus e todos os que são povo da república permita que, entre César e Deus, a nenhum deles pertença tudo, evitando teocracias e cesaropapismos, com os consequentes totalitarismos e apartheids da cité antique.
Sobre o laicismo, é sabido que, etimologicamente, vem do grego laikos, ou popular, onde a expressão portuguesa tem, aliás, como intermediário o francês laicisme, sendo introduzida na nossa língua apenas no século XIX. Trata-se da doutrina que defende a independência da sociedade e do Estado face à influência religiosa ou eclesiástica, sendo marcante no início do século XX, principalmente a partir da experiência da III República Francesa, depois do affaire Dreyfus de más memórias pelas consequências de intolerâncias de muitos lados que deviam ser aliados, para serem fiéis à casa comum da civilização europeia e mediterrânica, onde os homens da meia noite furaram a suavidade dos homens do luminoso meio-dia, para glosar Camus.
Equivale ao movimento britânico do secularismo. Tem as suas origens na reacção contra a doutrina das duas espadas assumida pelo papa Bonifácio VII na bula Unam Sanctam de 1302, luta assumida por autores como Marsílio de Pádua e Guilherme de Ockham. Desenvolve-se com o Renascimento, desde as novas concepções políticas de Maquiavel às perspectivas de ciência assumidas por Galileu, mas que foi amplamente assumida pelos nossos repúblicos, da estirpe erasmista de um Damião de Góis ou do escotismo de Luís de Camões, eternos mestres do universalismo lusíada e da arte de ser português.
Isto é, não pode reduzir-se à variante, marcada pelas teses de Saint-Simon e Comte, que teve tendência para substituir a religião tradicional por uma nova religião da humanidade, marcada pela confiança na razão finalística que às vezes se esqueceu da racionalidade axiológica, como nos ensinou Max Weber. Nem todos os maçons são inimigos da Igreja, necessariamente ateus, adeptos da gnose ou agnósticos, porque, entre muitas variedades, há os que permanecem religiosos, com os seus livros sagrados, ao lado panteístas, hereges ou simples seguidores estóicos da unidade plural dos divinos.
Já o anticlericalismo difere do laicismo, dado implicar uma hostilidade aberta face ao mundo clerical, pelo facto deste ter influência social ou política. Com efeito, o laicismo apenas rejeita a influência da Igreja na esfera pública, considerando que os assuntos religiosos pertencem à esfera privada de cada indivíduo.
Isto é, remonta ao anticongreganismo iluminista, sendo, sobretudo, marcado pelo espírito de resistência à modelação de certas vulgatas jesuíticas, embora, desde sempre, tenha sido moderado por deísmos ou humanitarismos panenteístas, nomeadamente por kantianismos e krausismos. Há assim várias ondas de anticlericalismo desde a Revolução Francesa, com destaque para o justificado movimento da unificação italiana, a inevitável Kulturkampf de Bismarck, entre 1871 e 1878, ou a Terceira República francesa, marcada pelo positivismo, onde caso Dreyfus vai agravar a tensão e culmina com a Lei da Separação de 12 de Dezembro 1905, do governo Combes, contra os regressos da intolerância pré-leonina, que nunca admitiu um liberalismo católico, em nome do dogma da infalibilidade papal ou da disciplina das muitas obras dos pretensos guerrilheiros de Cristo, com os seus exercícios e cursilhos espirituais, pós-medievais e inquisitoriais.
Contudo, ambos os ismos diferem do agnosticismo, termo cunhado por T. H. Huxley em 1869 (agnosticism), e, depois, divulgado por Herbert Spencer. Formado a partir do grego agnostos, isto é, aquilo que é relativo ao desconhecido, assume-se como uma doutrina segundo a qual não é possível conhecer o que está para além da experiência. Porque os seres humanos nunca teriam, silogisticamente, suficientes provas para sustentarem uma afirmação ou para negarem uma proposição.
Neste sentido, a tese admite a impossibilidade do entendimento humano aceder ao absoluto. Que não é possível saber se Deus realmente existe ou não. Uma doutrina que está ligada ao movimento céptico do cientismo, principalmente à rejeição das crenças cristãs.
Diremos que, na história portuguesa contemporânea, o desaguar do liberdadeiro movimento maçónico tanto acirra os processos situacionistas demoliberais da monarquia liberal e da I República, algumas vezes com exaltados devorismos e radicalismos, como também nunca perdeu o sonho de instauração, ou de luta pela restauração, da liberdade, como aconteceu face ao contra-revolucionarismo apostólico, ou ao autoritarismo salazarista.
Entre 1820 e 1918, sempre houve múltiplas maçonarias e sucessivos catolicismos sociais e políticos, bem como vários anticlericalismos, outros tantos congreganismos, inúmeros laicismos e não menos fundamentalismos, fanatismos e agnosticismos, todos em espiral reactiva.
Comecemos por recordar que o velho reino, esquecido da lusitana antiga liberdade, segundo o censo de 1821, tinha 3 026 450 indivíduos, dos quais 12 500 eram religiosos, religiosas e serventes dos conventos.
Acrescentemos que em 1834 ainda havia cerca de quatro centenas de conventos e de meia centena de hospícios (448 casas religiosas, das quais 356 eram conventos de religiosos e 12 de religiosas, 28 colégios, 49 hospícios e ermidas, bem como 3 seminários). Dominavam os franciscanos (44%), seguindo-se os agostinhos (9,4%), os carmelitas (7,1%) e os beneditinos (6,5%), abrangendo-se 6 289 pessoas, segundo números de A. Martins da Silva. E isto num universo, onde, de acordo com Vitorino Magalhães Godinho, os rendimentos das ordens religiosas em 1832 andavam pelos 1 162 contos, enquanto o Estado recolhia apenas 1 600 contos, em impostos directos…
Isto é, no dealbar do século XIX as funções que hão-de ser nucleares do Estado, enquanto sociedade perfeita, ainda eram exercidas pelas sociedades imperfeitas do clero e da nobreza, do ensino à saúde, incluindo a própria defesa nacional, sem qualquer princípio da subsidiariedade. Basta recordarmos que só depois de três quartos de século de república é que foi eleito, por sufrágio universal e directo, um presidente não-militar, tal como o registo civil só foi instaurado depois de 1910 e a cidadania inividual livre dos colectivismos de seitas tem menos de um quarto de século e ainda é projecto por cumprir, sobretudo por não ser ainda efectiva a liberdade de ensinar e de aprender, com a necessária igualdade de oportunidades, que tem regredido no ensino público, para gáudio dos mais privilegiados que investem nos ensinos de reservado direito de admissão no ranking concordatário e congreganista, mas de público subsídio e prémio, livre, muitas vezes, do imposto geral e permanente instaurado por D. João I.
Isto é, a sociedade de ordens do ancien régime nunca se extinguiu de um momento para o outro, por efeito de uma revolução ou de um decreto, tal como as contra-revoluções nunca foram geradas por duas aparições marianas ou por um qualquer golpe de Estado. Basta assinalar a manutenção de amplas zonas de legitimidade dos donos do poder, no presente neocorporativismo, na permanência da encomendação feudal da cunhocracia ou no alastrar dos caciquismos, dos clientelismos, dos nepotismos ou do cancro da compra do poder, a que damos o nome de corrupção.
Entre 1800 e 1834, tivemos sucessivas sementes de mudança, quase todas frustradas, e, entre o pombalismo e a viradeira, talvez seja mais justo dizermos que houve a tradicional tensão entre o partido dos funcionários e o partido dos fidalgos, tal como, depois de 1820, foi acentuado o conflito entre o partido dos becas e o partido da tropa, com martinhadas, contra-martinhadas, abriladas e vilafrancadas, onde os adesivos e os viracasacas do oportunismo passaram de um extremo ao outro da traição servil, dado que continua a ser difícil a contenção da sociedade da Corte e as heranças da velha sociedade corporativa, tanto do clero, incluindo a universidade, como da nobreza militar, bem como das legitimidades carismática e patrimonialista.
Sempre tivemos a ilusão das subversões a partir do aparelho de Estado, para citar Sottomayor Cardia, desde a absolutista concessão de uma carta, com que o rei absolutista nos liberalizou, à restauração da democracia através de um golpe militar.
Daí a incompreensão das raízes da construção do Estado moderno, semeadas pelo vintismo e pelos projectos racionais da ordem maçónica, em torno da construção da cidadania, a partir dos homens livres das tutelas corporativas e dos colectivismos morais, de antes quebrar que torcer.
Daí alguns fulgores construtivistas dos novos regimes, com os seus ditatoriais governos provisórios e as consequentes confusões entre a própria maçonaria e os partidos-sistema, com os sucessivos erros de chamorros (1834), cartistas (1842), regeneradores (1851) e republicanos (1910).
Infelizmente, habituados aos picos vanguardistas, não costumamos fazer ressaltar os longos períodos reformistas dos regimes pós-revolucionários, até porque a literatura de justificação das viradeiras, incluindo a salazarista, costuma exacerbar erros anteriores, para que se continue a confundir a árvore com a floresta e a betesga com o rossio, darwinistas e haeckelianos com kantianos e krausistas, ou estóicos com ateus.
Tanto os católicos como os maçons mudaram muito durante os séculos XIX e XX e continua a ser um atentado contra os homens de boa vontade e os homens livres certa interpretação retroactiva da história, feita pelos sucessivos revisionismos históricos, com as suas propagandas, em música celestial, adesivas ou viracasacas.
A organização política eclesiástica tem de reconhecer que só se reconciliou com a democracia a partir de 1891 e não pode reduzir dois séculos de maçonaria portuguesa a alguns instantes construtivistas de incompreensão das ditaduras revolucionárias de 1834 ou de 1911, esquecendo os armistícios regeneradores pós-revolucionários, de sociedade aberta e pluralista. Para que todos esqueçamos as cumplicidades e os silêncios face à lei proibicionista de 1935, ao contrário dos exemplos de Alberto Moura Pinto e António José de Almeida, que não tiveram o justo retorno.
Talvez seja preferível notarmos que as relações entre o religioso da graça e o político da terrena natureza humana, tanto podem traduzir-se numa concepção teocrática e fundamentalista como numa concepção clássica, quando se considera que o político e o religioso são regidos por um transcendente que lhes é comum: a ordo rerum, a natureza das coisas, o cosmos, ou transcendente situado do direito racional de conteúdo relativo, onde a roda do eu vai variando, conforme as circunstâncias do tempo e do lugar das várias existências e perspectivas, mas permanece o eixo da roda dos valores e princípios da matéria individual, feita existência do homem concreto, de carne, sangue e sonhos, com os pés na lama do caminho, mas os olhos nas estrelas das saudades do futuro.
E talvez importe recordar que os nossos repúblicos renascentistas pré-inquisitoriais optaram por esta última concepção, assumindo-se à maneira do clássico homo theoreticus, daquele que parte de uma norma universal para uma instituição particular, com a consequente subordinação das realidades políticas à transcendência de uma abstracção, mantendo o primado da ética sobre o politique d’abord.
Como refere Eduardo Hinojosa, nessa altura, até os teólogos praticavam a respectiva ciência como Cícero considerava a ciência do Direito, enquanto conhecimento das coisas divinas e humanas e ciência do justo e do injusto. Chamavam-lhe prudência, conforme João de Barros refere nos seus Panegíricos, como saber as coisas que se devem saber, e isto no entendimento das cousas divinas e humanas
Até um jesuíta, como Francisco Suárez, partindo do princípio que os homens, segundo a ordem da natureza não se regem nas coisas civis pela revelação, mas pela razão natural, proclamou, contrariamente a Santo Agostinho e a Lutero, que o poder político não se funda no pecado ou em alguma desordem, mas na natural condição do homem. Porque o poder de dominar ou reger politicamente aos homens, a nenhum homem em particular lhe foi dado imediatamente por Deus; este poder só em virtude do direito natural está na comunidade dos homens, está nos homens e não em cada um ou num determinado. Assim, o poder político é visto como algo de direito humano, como instituição dos homens e doação da república, algo que surge por vontade de todos (per voluntatem omnium).
Tal como o humanismo laico e não absolutista de Espinosa, precursor de Rousseau, opondo-se à teocracia de protestantes, católicos e judeus, vai estruturar a primeira teoria democrática moderna. Primeiro, quando deixa de considerar a liberdade como mero atributo de uma minoria de cidadãos, fazendo-a radicar na universalidade humana, na multitudo. Segundo, quando perspectiva a mesma democracia de forma realista, entendendo-a como uma conjugação do poder e da liberdade e retirando-a dos domínios da utopia, quando aceita que o homens são iguais do ponto de vista do direito, mas desiguais do ponto de vista do poder.
Aliás, não é provocatório recordar que até o Partido Popular Italiano, fundado por Luigi Sturzo, se assumiu como movimento laico, não confessional, ao contrário do que aconteceu como o movimento português congénere, o Centro Católico Português, que até foi directamente inspirado e previamente autorizado pela Conferência Episcopal Portuguesa, um pouco à semelhança do partido único da dita União Nacional, estabelecido decretinamente por resolução do conselho de ministros, onde todos fomos demais para que as abstenções contassem como votos a favor do autoritarismo, a fim de que se propagasse a servidão voluntária e se impedisse a necessária revolta de escravos.
Do mesmo modo, um Jaques Maritain defendeu uma cidade laica de inspiração cristã e um Estado laico cristamente constituído, isto é, um Estado onde o profano e o temporal tenham plenamente o seu papel e a sua dignidade de fim e de agente principal ‑ mas não de fim último nem do agente principal mais elevado e que levaria também à extraterritorialidade da pessoa face aos meios temporais e políticos.
Quem reduzir a dimensão do humanismo católico aos episódios contra-revolucionários das abriladas de 1824 ou das acções de algum providencialismo, posto ao serviço da Santa Aliança dos apostólicos, derrotados em 1834, comete o mesmo vício dos que não reparam que uma certa lei de 1911 foi revista em 1918 por activistas da mesma instituição que teve como grão-mestre um António José de Almeida que reatou as relações entre Lisboa e o Vaticano.
Apenas repito, glosando Fernando Pessoa, que se o Estado é superior ao cidadão, o homem está sempre acima do Estado. É livre e de plurais pertenças, para que o Estado deixe de ser um César, ou de direito divino, com encontros imediatos com o charlatanismo providencial, e passe a ser nós todos, homens comuns que espremam, gota a gota, o escravo que todos têm dentro de si, para glosar Tchekov.
O Estado da coisa pública, chame-se cidade, república ou reino, somos nós e não um qualquer L’État c’est moi, dos absolutismos providencialistas que esqueceram a velha, mas não antiquada, doutrina aristotélica, cristianizada por São Tomás de Aquino, segundo a qual a cidade nasceu da natureza humana e não da graça. Daquele elemento voluntário, produto das pessoas, que, pela ideia de contrato, em nome dessa estrela do norte que é a justiça, produziram a sociedade política, onde o pacto de associação ou de união sempre foi superior ao pacto de sujeição ou de governo, se para tanto nos submetermos à ideia de constituição, sem a qual não há pluralismo, controlo do poder e respeito pelas minorias, nesta cultura de liberdade a que, hoje, demos o belo nome de Estado de Direito, sinónimo de paz perpétua, república universal ou peace through law, o tal que é de-rectum, longe do torto, em procura da norma e da regra, a que o plurissecular simbolismo dos homens livres da intolerância, do fanatismo e da ignorância tem dado os nomes de compasso e de régua, sempre em abraço armilar, a caminho da cosmopolis e da super-nação futura. Só homem segue regras, porque só aquele que sabe que vai morrer e procura a raiz do mais além as pode não seguir. O homem é por exigência da perfeição um animal cívico.