Liberdade e identidade, neste pedaço de pátria que já existia antes de haver Portugal

Cinquenta quilómetros, Guadiana acima, no coração do Al-Andalus, neste presépio sobre as águas, vim ao fundo daquele Portugal que já existia antes de haver Portugal. No Alentejo há montes claros, cabras que pastam, dias de quentura, um velhote que vai regando a horta. Os botes e as canoas estão guardados no cais, há borrego ensopado, migas de poejo, cozido de grão e o som dos chocalhos chega à outra margem. Revisito o lugar e recordo David Lopes e os arabistas que nos desvendar sinais daquele povo quase por identificar que ocupou a embocadura das colunas de Hércules, antes de Tárique as atravessar, antes da reconquista voltar a Ceuta, antes de Alcácer-Quibir, para que Bin Laden repare que foi nesta raia que a independência moderna de Portugal se firmou, entre 1640 e 1668. Basta ir ao museu de Mértola contar as cruzes pré-portucalenses que até eram maioritárias no chamado cemitério islâmico da cidade, para confirmarmos que a nossa liberdade e a nossa identidade têm profundas raízes de vontade e de resistência. É desta forma que me apetece comemorar o centenário de Miguel Torga, com o orgulho de sermos a nação mais antiga e permanecente da Europa Ocidental, com  a necessidade de conjugarmos a liberdade com a identidade, dado que a segunda parece mais difícil de conquistar do que a primeira. Há metafísica na gente que passa, na criança que brinca, na flor que sorri. E Deus pode ser o balouçar do vento ou o pássaro que persegue a nuvem. Porque quando o infinito da beleza nos circunda, apetece que o tempo não passe e que as águas se sustenham. Apetece sorver fundo o próprio ar que se respira, deixar que o sol se difunda por mim dentro, e que tudo possa conter para sempre na folha branca do meu caderno. Que aqui sentado no terraço, olhando este pedaço do mundo que se estende à minha beira, é o mundo inteiro que, por mim dentro, vou vivendo, neste apetecer viver horas que tenham sentido, quando a esperança, em quente brisa, me aquece. Há o fluir de um rio no choupal da minha infância, há pontes de madeira, arenosos caminhos de terra batida e poços de água verde onde se fazia peixe à toca. Voltei a ser menino. Voltei a andar na bicicleta azul, como da primeira vez, voltei a aprender a nadar, a ficar horas sentado na minha figueira, com a cidade em presépio lá ao fundo. Que apetecia continuar menino, para ter que espreitar, de novo, a curva do caminho. É por isso que, noite dentro, me vou escrevendo, sozinho, por mim dentro, peregrinando a memória dos lugares de outrora que são para sempre.

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