Perante os dramas do défice e as incertezas do rumo europeu, os nossos donos do poder começam agora a reparar que a massa do povo vai ganhando consciência do vazio político que recobria a pilotagem automática desta governança sem governo, plena de falsos “amanhãs que cantam”, que nos tem marcado na época pós-revolucionária. Soarismo e cavaquismo, tal como os seus frustrados sucedêneos, do guterrismo ao barrosismo-santanismo, apenas foram ilusionismos que conseguiram aguentar-se em tempos de vacas gordas, mas que agora já se vislumbram como solenes nadas, quando a verdade nua e crua da factura nos é apresentada e, mais uma vez, ameaça ser paga pelos justos cumpridores, mas não pelos habituais pecadores da fuga ao fisco. Afinal, os sábios avisos de quem nos aconselhava a vivermos com aquilo que temos e produzimos deviam ter sido seguidos. Nunca deveríamos ter caído na tentação rotativista de dividir o bem e o mal entre o PS e o PSD, sucessivamente, com cansativas acusações recíprocas desses irmãos-inimigos, cada um a dizer que o outro é que era pesada herança da breve tanga. Porque, entretidos nos meandros desse mais do mesmo, ficámos assim algemados a um vazio de estratégia nacional, dado que o supremo valor passou a ser o impulso externo que nos vinha das encruzilhadas europeias. Até chegámos ao presente paradoxo de podermos ter mais um referendo condenado ao fracasso. Com efeito, pedem-nos que sufraguemos um nado-morto, confundindo esse cadáver apenas adiado com o ideal europeu. Aliás, se a nossa classe política dominante prosseguir numa opção que, de um momento para o outro, pode ser reduzida a pó, pelo conjuntural de uma cimeira europeia, ainda maior será o desnorte daqueles comandantes que parecem satisfeitos com a circunstância de se assumirem como simples potência secundária, face ao directório daqueles grandes que se proclamam como a locomotiva de uma geometria variável.
Monthly Archives: Junho 2005
Esta hipocrisia que nos invadiu por dentro…
Todos os regimes portugueses, quando começam a envelhecer e a apodrecer por dentro, tratam de manter, muito orgulhosamente sós, certos lugares de reservado direito de admissão no primeiro banco de um qualquer cerimonial com transmissão no telejornal, conforme as definições constantes do livro de estilo de um qualquer curso de formação acelerada, destinado ao aperfeiçoamento oligárquico dos funcionários das relações públicas e do protocolo do estadão. Por isso é que por aí abunda inúmera literatura de justificação que procura perpetuar o hierarquismo balofo do “jet set”.
Ao mesmo tempo, a gente graudamente engordada pelos aparelhos do sistema, bem instalada na garupa do cavalo do poder, vai alimentando uma ficção quase telenovelesca sobre as mudanças de regime, onde até não falta a própria visão aristocretina de certo elitismo de gente “bem” de extrema-esquerda que, continuando a circular pelas capitaleiras alfurjas do “radical-chic”, não deixa de procurar implantação entre os miméticos capitaleiros portuenses, mesmo quando recorre ao exótico de uma qualquer pronúncia do Norte, ou ao sotaque lentícola de um qualquer profe coimbrês.
Poucos têm a coragem de denunciar esta hipocrisia instalada que nos invadiu por dentro, muito especialmente as habituais posturas da arrogância intelectualóide, como se o país que pensa tivesse todo ele que usar as palas que costumavam marcar a pose dos que na minha terra se assumiam como os senhores doutores, os tais asininos carregados de livros que por aí escoiceiam. Como se a direita fossem os filhos-famílais da gente fidalgota que costuma dar muitas voltas pela estranja à procura de um qualquer canudo que os superiorize aos plebeus que se ficam pelas pobres escolas públicas lusitanas.
Por isso é que hoje gazetei a um desses cerimoniais do estadão, onde costumam espanejar o veludo vistoso das honrarias os muitos manequins da praça, trocando a conversa da diplomacia do croquete com essas majestades que, de vez em quando, descem de suas alturas para trocar dois dedos de conversa com as notabilidades das nossas cortes institucionais, que se se costumam distanciar da planície unidimensional onde continua a diluir-se o zé povinho, dos bate-palmas e desempregados.
Para um gonçalvista, a democracia não era compatível com a plena liberdade política
Para uma análise objectiva do gonçalvismo, basta consultarmos as cerca de quinhentas páginas dos “Discursos, conferências de imprensa, entrevistas de Vasco Gonçalves”, editadas por Augusto Paulo da Gama, com um esclarecedor prefácio do meu antigo professor de finanças públicas, José Joaquim Teixeira Ribeiro, o vice-primeiro ministro do patético V Governo Provisório que, por acaso, no actual portal do governo, está trocado com o VI, pondo Pinheiro de Azevedo em lugar de Vasco Gonçalves. Com efeito, o meu querido professor, reitor da Universidade de Coimbra com o 25 de Abril de 1974, e digo-o sem qualquer sarcasmo, disse, sem peias do gonçalvismo o seguinte: “a democracia, como se sabe, não é compatível com a plena liberdade política. Não o é a democracia formal, pois não pode consentir em actividades ou movimentos antidemocráticos que a ponham em perigo. Mas ainda menos compatível com a plena liberdade política é a democracia socialista, uma vez que não pode consentir nem em movimentos antidemocráticos, como a democracia formal, nem em movimentos anti-socialistas que ponham em risco a construção do socialismo”. Julgo que esta confissão é manifesta do que tentou ser o marxismo-gonçalvista lusitano: uma ditadura visando o que julgava ser os amanhãs que cantam. Até porque, continuando a citar Teixeira Ribeiro, “uma revolução…não pode ficar parada, tem de avançar ou recuar”. Felizmente que a fizemos recuar, exigindo-lhe que respeitasse os resultados eleitorais de 25 de Abril de 1975. Gonçalves, agora dito idealista por Vital Moreira, quando ambos eram, na altura consequentes adeptos do materialismo dialéctico e serviam, muito patrioticamente, o bloco soviético, em plena guerra fria, não foi, felizmente o nosso Trotski, o nosso Lenine, ou o nosso Fidel, teve, pelo menos a vantagem de, graças aos respectivos erros, permitir que, rapidamente e sem a força da guerra civil, lancetássemos o tumor do pré-totalitarismo que ensaiava. Ao que consta, até Teixeira Ribeiro acabou por abandonar essas ilusões de aceleração revolucionária, tal como antes tinha abandonado os entusiasmos que tinha manifestado pelo fascismo mussoliniano, quando nos anos trinta editava as suas “Lições de Direito Corporativo”. Aliás, se aceito que Vasco possa ter sido boa pessoa, não duvido da grandeza moral de Teixeira Ribeiro, homem bom e grande professor, de quem guardo excelentes recordações, mesmo em confronto ideológico. Mas o que não me impede de sublinhar os erros ideológicos e as tragédias a que nos poderiam conduzir as ideias que professava. Por isso, continuarei sempre a proclamar: revolução, nunca mais! Nem que seja uma revolução ao contrário! Os escritos vasquistas não passam de uma série de banalidades de “agitprop”, revelando, contudo, o perigo que ele representava, quando apelava para a “vigilância popular” de um pidismo vermelho e neo-inquisitorial, pleno de cláusulas gerais que inventavam adversários que, rapidamente, qualificava como uma “minoria de criminosos”, “um bando de salteadores”, porque “os nossos verdadeiros inimigos são a reacção e os fascistas”, com vivas às “massas trabalhadoras” e às “forças progressistas”. São também interessantes as inúmeras entrevistas dadas a jornalistas soviéticos, jugoslavos, húngaros e romenos. A melhor prova do falhanço do gonçalvismo foi a nobreza e a tolerância com que os anti-revolucionários da democracia pluralista, ocidental e burguesa, vencedora do 25 de Novembro de 1975, o trataram. Deixaram-no tão à solta que o balão de demagogia que representava se esvaziou quase de um dia para o outro. Até os cunha listas não lhe dedicaram adequada hagiografia.
O D. Sebastião científico foi o melhor aliado de Salazar
Para ser politicamente incorrecto e tentar fugir aos tradicionais ódios de quem sempre fui distante adversário, apetece dizer que graças ao protagonismo de Álvaro Cunhale do PCP no movimento unitário antisfascista de 1945, os aliados ocidentais, vitoriosos da guerra contra o nazi-fascismo, não favoreceram um movimento visando o afastamento de Salazar no pós-guerra. Basta recordar que nesses tempos, o próprio Mário Soares era um jovem colaborador desta forma portuguesa de servir o estalinismo. Deste modo, foi pela existência do profissionalismo revolucionário de Cunhalque o salazarismo conseguiu perpetuar-se e até receber o privilégio de fundador da OCDE, da NATO e da EFTA. Até poderemos acrescentar que a queda do Estado Novo só foi admitida depois da emergência da extrema-esquerda, a partir da cisão maoísta de Francisco Martins Rodrigues nos anos sessenta, o tal factor revolucionário imprevisto que o cunha lismo não conseguiu controlar e que constituiu, talvez, a principal alavanca que permitiu a emergência de Mário Soares e de um socialismo democrático, aliado do modelo ocidental de democracia. O tal esquerdismo, dito doença infantil do comunismo, gerando uma pluralidade de albaneses e chinocas em ritmo lusitano, da OCMLP ao MRPP, habilmente impulsionado pela CIA, desmantelou a hieraraquia do centralismo democrático, tão laboriosamente construída pelo ex-camarada Daniel. O inteligente, sedutor e cruel revolucionário profissional, para utilizarmos os justos adjectivos com que hoje foi brindado por uma sua criatura, a deputada Zita Seabra, agora ao serviço dos laranjas, não conseguiu assim lançar as bases daquilo que chegou a constitucionalizar como construção do socialismo, antes de muitos antigos cunha listas se ilusionarem com outros construtivismos, como o dos eurocratas, para que todos fôssemos meros cidadãos em construção, peças de um processo histórico, segundo o qual seria um certo caixilho ideológico dito história que construiria o homem. Felizmente, a história acaba por ser uma co-criação de homens livres, onde os indivíduos podem erguer a mesma história, ainda que não saibam que história vão fazendo. O paradoxo cunha lista está na circunstância de só poder haver colectivismos, como o pêcêpista, quando emergem voluntarismos indidividualistas, como os de Cunhal, o tal revolucionário profissional que, muito organizadamente, através de um vanguardismo hierárquico, dito centralismo democrático, obedece à rigidez do aço, com mão de ferro, tentando quebrar a força normativa dos factos. Afinal, aquilo que Guerra Junqueiro tinha profetizado em plena I República como a inevitável chegada de um D. Sebastião científico, acabou por configurar-se como a foice e o martelo da personificação de Manuel Tiago, que foi tão abstracto que, até pelo desenho, tentou criar um povo que nunca existiu, com a beleza trágica de camponeses e operários que só no delírio ideológico tiveram realidade. E não é por acaso que o passamento desse actor político ocorreu no pleno momento em que a Avenida da Liberdade lisboeta vivia a emoção das marchas ditas populares do Santo Antoninho, essa tradição inventada pelo salazarismo em 1934, no preciso ano em que também era inaugurada a estátua do marquês de Pombal, já em pleno Estado Novo, com a Maçonaria do Grande Oriente Lusitano, na véspera de ser extinta, ainda aparecer numa cerimónia oficial, ao lado de Duarte Pacheco e Linhares de Lima, os últimos representantes da ala republicana do 28 de Maio que Salazar tão habilmente manipulou.
Vasco Gonçalves
Sempre fui um antigonçalvista primário e um anti-revolucionário assumido, sem as ilusões de um futuro ministro de u governo socialista que até escolheu a data da tomada de posse do primeiro governo vasquista para fundar um partido centrista, com que pretendia envernizar o cavernícola marxista-leninista de certa tropa. Ele foi, sem dúvida, a imagem de um certo Abril prequiano que fora spinolista, passou a costa-gomista e acabou soarista, sem nunca ter sido otelista. Reconheço que, hoje, caiu mais um mito: o do companheiro Vasco que nunca teve direito a muralha de aço. Perseguiu “eme-erre-pum-puns”, encheu Caxias com capitalistas e contra-revolucionários; ajudou a descolonizar rapidamente e em força e deu origem, não apenas a movimentos unitários antifascistas, mas, sobretudo, a um gigantesco partido anticomunista que, ocupando as ruas, destruiu as pretensas lendas e narrativas do romantismo revolucionário, evitando que continuassem as prisões por delito de opinião, os atentados aos direitos do homem, a perseguição política dos adversários, os latrocínios, os roubos, as invejas à solta, o saneamento de professores e a expulsão de estudantes das próprias universidades, como fui vítima, perante o silêncio cúmplice e o aplauso de certos supremos magistrados dos dias que temos, quando ainda entoavam loas à luta de classes e ao sol da Terra soviético. Ele foi vermelho, menos de cravos e mais de foices e martelos, e bem podia ter sido a mão armada de Álvaro Cunhal. Não sendo Guevara, Allende nem Fidel, bem poderia ter sido um intróito para Hugo Chávez, em ritmo de Alberto João. Teve e tem cantadores, baladeiros e poetas que quase o deificaram em estatuetas para a festa do Avante, mas acabou por se eternizar em muitas anedotas. Inventou o conceito de “pesada herança do fascismo”, foi o murro que tentou “quebrar os dentes à reacção”, no 28 de Setembro, e personificou a nacionalização dos “homens sem sono” no 11 de Março. Se ainda houvesse União Soviética, seria, sem dúvida, digno da máxima condecoração moscovita. Esperemos que os habituais supremos carpidores da república lhe tracem o elogio funerário, olhando-se ao espelho. Apenas direi, como sempre, revolução, nunca mais! E contra-revolução, muito menos! Mas não poderei deixar de dizer que, graças à coerência desse militar de alcatifa e célula, que, “a contrariu”, erguemos, bem mais depressa, uma democracia pluralista e ocidental, sem as tragédias da guerra civil, até porque em pleno Verão quente, ele aceitou o convite de Otelo para optar pelas sopas e pelo descanso…
os chamadas psicopatas sentenciadores
E desta não poderão escapar os próprios vendedores de sentenças opinativas, incluindo os chamadas psicopatas sentenciadores e todos os que continuam o velho regime absolutista, segundo o qual o príncipe está solto da lei (“princeps a legibus solutus”) que ele próprio edita através da opinião, dado pensar que também é lei tudo o que príncipe diz (“quod princeps placuit, legis habet vigorem”), mesmo que seja um bocejo ou o habitual prognóstico feito depois do jogo ter acabado, dado que outros até se esquecem o que o mesmo príncipe, já olvidado de suas maneiras, tinha dito um quarto de hora antes do tal jogo ter começado, porque “un quart d’heure avant sa mort, il était encore vivant”. Proponho que a lei seja efectivamente igual para todos. Para a gente fina de Cascais e para a malta da Damaia, para os que vivem no Intendente ou nos condomínios da classe A e B, cujos habitantes militam no SOS Racismo. Proponho que chamemos os bois pelos nomes, isto é, que acabem com todos os acumuladores, incluindo aqueles que tiveram direito a vencimento acumulativo dado em resolução do conselho de ministros de um anterior governo PS, depois de já acumularem a pensão de deputado e de professor, para além do subsídio de curadoria, em fundação que costuma escolher um patriarca por partido, para, depois, organizar colóquios sobre a moralidade dos partidos ao cheiro da canela e das patacas, mesmo que seja o tlin-tlin das “slotmachines”. Os higiénicos ocultadores do termo raça, que é coisa que cientificamente não existe, como demonstra qualquer universidade ou investigador sérios, não são capazes de reconhecer que a culpa é de nós todos, desse falso paternalismo da memória colonial e imperial que, confundindo o bem com o mal, não é capaz de compreender que, com fantasmas de guerra colonial e preconceitos de descolonização, o racismo é uma fogueira que vai lavrando sem se ver, um primitivismo naturalístico que disfarça a nossa impotência de criação comunitária. Uma pátria que não reconhece que é bem mais rica porque, hoje, há mais portugueses a falar crioulo do que madeirense ou açoriano, mas que continua a não admitir o óbvio de sermos, pelo menos na grande Lisboa, um pequeno Brasil, é uma pátria transformada num cadáver adiado, só porque não repara que, para continuarmos a viver, temos que lutar pela reinvenção de uma identidade nacional capaz de mobilizar os pretinhos portugueses da Cova da Moura, a que só dão, felizmente, o futebol, do Benfica à selecção nacional, e algumas pitadinhas de Sara Tavares. Não é esse o meu Portugal. O meu Portugal não pode ter esta mentalidade de criação de favelas que por aí circula entre os que continuam com programas escolares e de televisão que nos pintam de caras pálidas, burguesas e fidalgotas. O meu Portugal não é o da educação multicultural irrealista, mas dos novos muitos Portugais que me enriquecem e que eu não tenho que integrar em unidimensionalismo, mas na variedade dos muitos crioulos que fizeram Lisboas, Alcáceres, Messejanas e muitas outras aldeias de variedade universal. Por isso exijo que os polícias estabeleçam a ordem, que os tribunais cumpram a sua missão e que as televisões mostrem que os criminosos que por aí andam são de todas as cores, de todas as classes sociais, de todos os bairros. Sejamos claros, a preto e branco, a loiro e a moreno. Não decepem o Portugal maior que ainda podemos reidentificar e amar! Os primitivos actuais são naturalisticamente racistas. Só o deixam de ser quando se conhecem, quando se amam, quando, através de um esforço de conversão, se elevam ao ardor de um sonho. Cá por mim, continuo a sonhar um Portugal cadinho de universal e até sou capaz de propor que o crioulo seja elevado a língua nacional portuguesa, ao lado do mirandês e do barranquenho. Saibamos ser dignos do Brasil que transportámos para a ex-capital do Império, mas não deixemos que cresçam as favelas da ignorância e da falta de transparência noticiosa. Só quem assumir uma identidade nacional aberta e reinventar todos os dias um sonho actualista de nação é que vale a pena, se a alma não for pequena! Obrigado, Sofia, a chinesinha que nasceu na minha rua e que anda sempre com o cozinheiro do restaurante indiano, a brincar com o pretinho Jaquim e com a Maria, moldova, seus vizinhos, neste belo quadro de um Portugal que pode voltar a ser abraço armilar! Os polícias são necessários, mas não são os polícias sozinhos que fazem as pátrias!
Algumas notas para uso do sim através do não…
O projecto de tratado pretensamente constitucional, que por aí se referenda, reflecte os erros típicos de certos arquitectos do politiqueirismo planeamentista e construtivista, esse que tenta fabricar códigos-pudim, muito pretensamente “SSS”, isto é, “sintéticos, sistemáticos e scientíficos”, onde cento e cinco eleitos pensam conseguir uma racionalização acabada e definitiva de um conjunto de regras que ousam eternizar para os “amanhãs que cantam”. Esquecem que nunca as grandes conquistas da humanidade se reduziram a essa mania dos que pensam ter contactos imediatos de primeiro grau com o espírito santo, como se a pomba do dito não fosse mais democrática e não andasse em voo livre, longe dos circuitos fechados dos que julgam deter o monopólio da inteligência. Interessam menos as legalices e as codificacionices e mais os princípios gerais que dão alma às leis, as tais regras da conduta justa que recolhem os eternos princípios das leis que estão escritas nos corações dos homens. Quando alguns positivistas velhos e relhos confundem a arquitectura das regras de organização com o direito da razão, resta a gargalhada. Acresce que o tratado também deve ser rejeitado por razões de estética institucional. Os codificionistas têm a mania dos “terreiros do paço” Pombalinos, com muitas arcadas e o pormenor dos nichos sem estátuas, com que pretendem normalizar a criatividade dos artistas futuros. Eu prefiro a evolução espontânea das Alfamas, das cidades feitas pelos pedreiros e pelos sonhos dos construtores de casas, feitas à imagem e semelhança dos homens comuns que nelas investem. A Europa dos arcos do triunfo é como as estátuas com pés de barro. Afundam-se na primeira curva de um qualquer referendo. Continuo a preferir a Europa multidimensional, da pluralidade de pertenças, onde possa misturar-se federalismo e nacionalismo, localismo e globalismo. A razão e a vontade não são as duas únicas potências da alma. Há que encimá-las com a imaginação e o simbólico. E há que dar espaço de sonho às asas da razão axiológica, da criatividade e até do excêntrico. Alguns dos tecnocratas do directório eurocrático, esses herdeiros da federação dos impérios frustrados que por aí andavam, entoando a música celestial da inevitabilidade, contra os pretensos europeístas do costume, deram com os burrinhos na água. E nem o cardeal lhes valeu. Mesmo com o apoio de senadores como os dois que, para compensarem a não entrada da Turquia, propuseram a de Cabo Verde, sem ouvirem o povo de Cabo Verde. Não continuem a reduzir a multidimensionalidade do “não” aos ditames dessa espécie de neo-dogmatismo antidogmático dos que queriam fazer da Europa uma segunda edição revista e acrescentada do catecismo da “Organização Política e Administrativa da Nação” de má memória, segundo o ritmo do decálogo do Estado velho. Abaixo a razão de Estado. Mesmo que seja a do Euro-Estado. Não deitemos pela janela o soberanismos dos Estadinhos para nos entre pelo sótão o soberanismo do Estadão.
A Europa da pluralidade de pertenças e o regresso à política
Defender a ideia de Europa no contexto deste processo pós-referendário implica reconhecer, na senda de Daniel Bell, que o Estado a que chegámos é, ao mesmo tempo, pequeno demais para os grandes problemas da vida e grande demais para os pequenos problemas da vida. Ele é pequeno demais para resolver os grandes problemas do nosso tempo (a economia, a segurança, o ambiente, a tecnologia, a saúde) e, para o efeito, sob o alento da aldeia global, vamos tentando projectar e construir, por todo o lado, grandes espaços. Mas também é grande demais, pelo menos quanto à participação política e à humanização do poder, e muitos vão exigindo desconcentração, desregulamentação, descentralização e regionalização. Implica também assinalar que acabou certa era das ideologias da guerra fria quando se transformaram questões concretas em questões ideológicas, colorindo-as com uma tensão ética e uma linguagem emocional. Porque, aqui e agora, nós, os herdeiros da liberdade europeia, marcados tanto pelas tradições do humanismo laico como do humanismo cristão, estamos cansados das artificiais divisões entre a direita e a esquerda e dos consequentes combates entre reaccionários e progressistas ou entre liberais e socialistas, e talvez tenhamos de aceitar que só podemos superar as encruzilhadas da história se admitirmos o essencial da perspectiva da pluralidade de pertenças e da consequente “disjuntion of realms”, da existência de princípios axiais diferentes nos campos da economia, da política e dos valores culturais. Já Emmanuel Mounier, nos anos trinta e quarenta do século XX, se dizia, ao mesmo tempo, radical nos objectivos económico-sociais, reformista nas metodologias políticas e conservador no tocante aos valores. Como recentemente o citado Daniel Bell admitiu uma aproximação ao socialismo nos domínios da economia, mas com uma profissão de fé liberal em política e uma atitude conservadora quanto ao valores culturais. Talvez seja esta pluralidade de pertenças, contrária aos reaccionários preconceitos de esquerda e de direita que nos leve de volta a certa memória liberdadeira e radical, em nome dos princípios, necessariamente reformista no tocante às atitudes políticas e defensora dos grandes princípios do regresso à política. Esse horizonte, onde necessariamente se insere a ideia de Europa que sufragamos. O regresso à política, a retomada da “res publica”, a reinvenção da cidadania, são a única forma de superarmos as actuais doenças dos sistemas políticos, sitiados pela corrupção e pelo clientelismo. As causas que têm gerado as actuais vagas populistas, xenófobas e racistas que ameaçam a Europa. Sintomas que só podem ser removidos se à terapêutica acrescer a profiláctica de uma educação cívica, capaz de retomar uma perspectiva liberdadeira de pessoa, uma perspectiva comunitária de sociedade e uma visão do Estado como um Estado-Razão e um Estado de Justiça. Apenas receio que se trate de manobra de propaganda dos eurocépticos visando o futuro referendo sobre a futura constituição dita europeia. Ou de contra-informação norte-americana, atacando mais um dos excelentes relatórios do mesmo deputado europeu do PPE. Ontem gostei mais de ver a reportagem televisiva sobre o turismo intra-europeu da chamada extrema-direita, que é coisa que gosta de fazer caçadas e normalmente sai caçada. Verifiquei que as nossas forças da ordem gostam de ver televisão e que, como também são caçadores, caçaram imediatamente quem disse que ia para a rua pôr a ordem nova. O político que tal proclamou, conforme dizem os jornais, é profissionalmente aquilo a que chamam “segurança”. Julgo que, de acordo com a legalidade, se ainda houvesse PIDE ou DGS, bem como regras do tempo da Constituição de 1933, as forças da ordem velha teriam que fazer o mesmo do que fizeram estas, com a mesma exemplar diligência com que, além de caçarem estas caricaturas, irão amanhã caçar os defensores da violência pintada de esquerda, centro ou direita. Basta recordar que, entre os primeiros detidos da PIDE, fundada em 1945, com alguma inspiração britânica, estavam vários nazis refugiados em Lisboa, como se Salazar se tivesse esquecido que Herr Hitler mandara assassinar na Áustria o seu companheiro de ideias corporativas e beatas, Herr Dolfuss. Quem tiver dúvidas, basta ler os folhetos de defesa dos nazis feitos no imediato pós-guerra por Alfredo Pimenta e ir aos arquivos da polícia política do Estado Novo, à secção permanente que mantinham, na luta contra os adeptos da suástica e similares. Julgo que a RTP começa a sair da casca com este tipo de reportagem sobre o nosso quotidiano, depois da que fez, uma semana antes, com a violência nas escolas. Sugiro que a próxima visita das câmaras passe por umas reuniões de acampamentos trotskistas, para , depois, filmarem conspirações de pedófilos, assaltantes de rua, mafiosos, “hooligans”, aderentes ao terrorismo fundamentalista, etc., a fim de ficarmos a saber como temos necessidade de polícias, tribunais e prisões, desses “aparelhos” movidos a repressão que garantem ao Estado o monopólio legítimo da violência legítima. Do que vi na televisão, a reportagem foi exemplar, não havendo sequer necessidade de um carimbo ideológico nas lentes usadas, pelo tradicional recurso aos teóricos da esquerda revolucionária que ganham a vida como congreganistas do “caça-fascistas”, tal como outros procuram os fantasmas dos que querem enforcar o último padre nas tripas do último papa, e vice-versa.
Contra o europês das traduções em calão…
O Estado a que chegámos, em português pós-revolucionário, onde Bismarck e Napoleão III se chamaram Salazar , de quem Vasco Gonçalves foi bastardo sucessor, não passa daquilo que em francês se chamou “État Providence” e que, em anglo-germânico se chamou “Estado de Bem Estar”. O tal aparelhismo alimentado a imposto que gerou intervenção na economia e na sociedade e que levou àquilo que Habermas vem qualificando como a “repolitização da esfera social”. O tal “Estado de Bem Estar” que, segundo Cotarello, passou a “Estado de Mal Estar” e que tem provocado, já há várias décadas, um processo de crescente auto-limitação do monstro, onde neo-liberais e neo-socialistas têm comungado num programa de privatizações e de des-regulações. Talvez volte a ser urgente uma nova cultura de análise desta encruzilhada, mas através de uma reinvenção teórica. Só que, infelizmente, continua a ser cedo, aqui e agora, para a superação do dicionário dos mestres-pensadores, para a ultrapassagemn da fragmentação dos paradigmas dominantes, isto é, dos vários pensamentos únicos e dos vários “politically correct”. Por mim, prefiro o regresso à “polis”. Num “reculer pour mieux sauter”, não para citar Lenine ou Napoleão, mas o original de Leibniz. Para retomarmos à cidadania, enquanto participação. Corrigindo os excessos oligárquicos deste mega-democracia representativa, dominada pelos pensadores oficiosos das homilias situacionistas e dos contra-poderes opinativos gerados pelos controladores dos regimes. Regressemos à origem romana do conceito de “publicum”, onde, mui republicamente, apenas podia ser público o que era horizontal, pacto, consenso, “sponsio rei publicae”, confiança pública. Onde o povo igual, o povo comum, em comício, respondia à provocação do magistrado para emitir o máximo da lei, que nunca foi o que vem de cima para baixo, mas antes o que vem de baixo para cima. Regressemos ao globalismo estóico, sucessivamente reinterpretado pela “respublica christiana” e pelo “ius publicum” europeu, de Leibniz e de Kant, nesse conceito de “paz perpétua” que, actualmente é equivalente ao modelo de Estado de Direito universal. Mas não esquecendo que só se alcança o universal pela diferença, dividindo para se unificar, gerando unidade pela variedade. O que implica deseconomicizarmos o global, num crescendo que passa pelo local, pelo público e pelo global, numa quase coincidência com essa ascensão do individual, estatal e humanitário, o triângulo evolutivo da complexidade crescente onde devemos eliminar o conceito de Estado como sinónimo de público e o conceito de legalidade como equivalente ao de direito e de justiça. Só assim poderemos ter uma “patria chica” sem paroquialismos. Uma cidade sem bairrismos. Uma nação sem nacionalismos. Um Estado sem soberanismos. E um global universal, sem desprezo pela diferença. O global dos muitos arquipélagos de autonomias, unidas de centro a centro, de cabeça a cabeça, de interior a interior, sem cedência aos cilindros compressores dos unidimensionalismos. O universal é descobrirmos que, dentro de cada indivíduo, já lá está o sinal de universal. Que o homem é um fenómeno que nunca se repete. Um solitário, um bom selvagem que pode ser lobo do homem se não for bem educado. Se não reparar que, ao lado da sua dimensão de solidão, há uma dimensão social, política e global. Que, ao lado do solitário, há o cidadão, que não é concessão do Estado, mas antes um espaço de autonomia que tem de nascer de novo, que tem de resistir, de baixo para cima, de dentro para fora. Para que todos possamos crescer. Em progresso quantitativo de melhoramentos materiais, mas também em progresso qualitativo, onde não basta o crescer para cima, exigindo-se o crescer para dentro, para que os homens possam voltar a fazer a história, mesmo sem saberem que história vão fazendo.
A Europa da pluralidade de pertenças e o regresso à política
Defender a ideia de Europa no contexto deste processo pós-referendário implica reconhecer, na senda de Daniel Bell, que o Estado a que chegámos é, ao mesmo tempo, pequeno demais para os grandes problemas da vida e grande demais para os pequenos problemas da vida. Ele é pequeno demais para resolver os grandes problemas do nosso tempo (a economia, a segurança, o ambiente, a tecnologia, a saúde) e, para o efeito, sob o alento da aldeia global, vamos tentando projectar e construir, por todo o lado, grandes espaços. Mas também é grande demais, pelo menos quanto à participação política e à humanização do poder, e muitos vão exigindo desconcentração, desregulamentação, descentralização e regionalização. Implica também assinalar que acabou certa era das ideologias da guerra fria quando se transformaram questões concretas em questões ideológicas, colorindo-as com uma tensão ética e uma linguagem emocional. Porque, aqui e agora, nós, os herdeiros da liberdade europeia, marcados tanto pelas tradições do humanismo laico como do humanismo cristão, estamos cansados das artificiais divisões entre a direita e a esquerda e dos consequentes combates entre reaccionários e progressistas ou entre liberais e socialistas, e talvez tenhamos de aceitar que só podemos superar as encruzilhadas da história se admitirmos o essencial da perspectiva da pluralidade de pertenças e da consequente “disjuntion of realms”, da existência de princípios axiais diferentes nos campos da economia, da política e dos valores culturais. Já Emmanuel Mounier, nos anos trinta e quarenta do século XX, se dizia, ao mesmo tempo, radical nos objectivos económico-sociais, reformista nas metodologias políticas e conservador no tocante aos valores. Como recentemente o citado Daniel Bell admitiu uma aproximação ao socialismo nos domínios da economia, mas com uma profissão de fé liberal em política e uma atitude conservadora quanto ao valores culturais. Talvez seja esta pluralidade de pertenças, contrária aos reaccionários preconceitos de esquerda e de direita que nos leve de volta a certa memória liberdadeira e radical, em nome dos princípios, necessariamente reformista no tocante às atitudes políticas e defensora dos grandes princípios do regresso à política. Esse horizonte, onde necessariamente se insere a ideia de Europa que sufragamos. O regresso à política, a retomada da “res publica”, a reinvenção da cidadania, são a única forma de superarmos as actuais doenças dos sistemas políticos, sitiados pela corrupção e pelo clientelismo. As causas que têm gerado as actuais vagas populistas, xenófobas e racistas que ameaçam a Europa. Sintomas que só podem ser removidos se à terapêutica acrescer a profiláctica de uma educação cívica, capaz de retomar uma perspectiva liberdadeira de pessoa, uma perspectiva comunitária de sociedade e uma visão do Estado como um Estado-Razão e um Estado de Justiça.