O acervo, começado a construir em 2000 e já depois de ter deixado de poder receber actualizações a partir de 2003, tem sido considerado um dos melhores e mais completos repositórios de dados políticos sobre o século XIX e XX portugueses (aliás, basta comparar com os projectos concorrentes, para verificarmos como a coisa até foi baratinha e deixou algum rasto…). Os testemunhos em inúmeros portais e obras científicas, bem como as qualificações de eminentes especialistas e revistas da especialidade são inequívocos. Verifica-se agora que o apagão, sem qualquer cuidado nem quanto a redireccionamentos, foi objecto de negligente gestão ou, o que seria mais grave, de dolosa violação dos princípios constitucionais de aplicação directa quanto à protecção da liberdade académica e do direito à memória.
Tudo aconteceu pela calada das férias e não parece que a desculpa de eventuais quebras de “links” sejam satisfatórias, depois da vigorosa reacção da blogosfera. Nota-se, objectivamente, que os serviços ditos públicos, principalmente de universidades ditas públicas, não podem apagar de um servidor público essa referência, mesmo que se desculpem com a ileteracia informática ou com os serviços a entidades empresariais de vão de escada ou a agentes pagos a recibos verdes.
O nome “utl” (Universidade Técnica de Lisboa) e o nome “pt” não podem carimbar graves erros técnicos ou dolosas violações da Constituição. Exige-se a imediata reposição da ofensa à liberdade e que os poderes públicos responsáveis pela aplicação das leis constitucionais sobre a liberdade de aprender e ensinar garantam um sistema de protecção de dados e do património cultural, principalmente pela manutenção em rede destes investimentos culturais. O pedido de desculpas ou a promessa de mais um inquérito não passam de argumentos esfarrapadas perante a ofensa praticada ao próprio nome da escola em causa.
Por outras palavras, o limpamento ordenado foi qualificado como avaria técnica dos pretensos saltos tecnológicos e a defesa dos direitos da memória foi reencaminhada para outro braço anónimo do mesmo “big brother”, uma coisa que tanto pode ser uma oficina de vão de escada que recebe ordens do chefe de repartição, como um qualquer recibo verde que pode deixar de ser pago caso não se obedeça ao adjunto do subchefe do chefe, ao melhor estilo daquilo que Hannah Arendt qualificou como “governo dos espertos”, em aliança com o “domínio perpétuo do acaso” e do senhor “ninguém”.
Entretanto, o “big brother” vai dizendo: eu sou Portugal, eu sou a República, eu sou o Estado, eu sou a Universidade, eu sou a Escola, eu sou a mudança e as quebras de “links” são negligência e não dolo, nem sequer eventual. Logo, mesmo que a negligência gere cessantes homicídios culturais, a culpa continua solteira. E nada melhor esperar que a justiça lentamente mate mesmo a liberdade.
Por isso, continuarei a resistir. A liberdade não tem férias nem fins de semana. Obrigado, blogosfera! Viva a república universal das pessoas livres e da consequente sociedade civil internacional, enquanto não eliminarem os “links” e o espaço nos servidores, ao serviço de um pretenso pensamento único. Reparo, contudo, que sou um privilegiado: professor catedrático, subdecano da instituição, com alguma voz. E que conheço os meandros dos pré-totalitarismos, com algumas provas prestadas.
O que está a acontecer não é mera vingança. É meticulosa repetição da velha estratégia do maquiavelismo clássico. Se eles até decapitam quem não se submete à corte, todos os outros se moldarão sem necessidade de repressão, gerando-se uma maioria de cobardes, sobre a qual será mais fácil o exercício do unidimensional rolo compressor. Daí a táctica do salame e das correias de transmissão, para que o rebelde ou o dissidente possa ser qualificado como doidinho pelo pelourinho da paz dos cemitérios.
Como professor, não é a minha pessoa que está em causa. É o exemplo que devo dar. Aliás, ainda há dois anos, o “big brother” ainda me ofereceu o poder de carregar no botãozinho da campainha com que se liquidam mandarins no exótico ou na vizinhança. Recusei. Não lhe reconheci autoridade para me dar poderes que não são dele. Eu sei resistir. Não sei se as instituições que eles capturaram já o podem fazer sem o exílio dos homens livres.
Não quero agora invocar testemunhos da “Revista História” de Fernando Rosas, bem como as centenas de citações científicas que o arquivo agora apagado têm suscitado. Basta um saltinho à Google e a contagem de 11 800 citações. Repito: onze mil e oitocentas citações. Num tempo em que a ciência se mede também quantitativamente pelo serviço público, apenas anoto a histeria da persiganga.
Deixo o registo destas chaves de acesso a quem, hoje ou amanhã, se queira dedicar a viajar pelos kafkianos processos da nossa liberdade académica em tempo de muitos Pilatos.
Adelino Maltez sobre o apagão «bárbaro» do CEPP
«Querem criar um ambiente de servidão voluntária no País»
Na sequência da eliminação dos arquivos do CEPP — entretanto repostos —, Adelino Maltez, fundador do site, refere no seu blogue que estamos perante um ataque aos homens livres do País e que, caso não regressem os arquivos para consulta pública irá agir judicialmente contra o Estado
Ana Clara
Porque os donos do poder desta secção da universidade eliminaram dos arquivos de consulta pública o Centro de Estudos do Pensamento Político (CEPP), isto é, 183MB com 12 mil ficheiros e meio milhão de entradas. É desta forma que José Adelino Maltez, fundador do «site», Professor Catedrático do Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas (ISCSP), denuncia o apagão daquele que é considerado «o melhor arquivo» de história política portuguesa contemporânea «online», www.iscsp.utl.pt/ceppp — e dos ataques constantes aos homens livres deste País.
12 mil ficheiros apagados
Adelino Maltez salienta que o Centro de Estudos do Pensamento Político, constituído em 2000, por si e por mais dois estudantes, atingiu «a quantia de 183 MB e 12 mil ficheiros e com mais de 11800 citações em motores de pesquisa na Internet. «Além disso, faz ainda parte do currículo oficial do Ministério da Educação, é “livro” de consulta na universidade de Luanda, apoio académico no Brasil e tem tido recepções críticas na Revista de História», informa.
Recorda que, pelo meio, em 2003, «os patrões» da sua universidade — o ISCSP — «não quiseram as duas pessoas que trabalhavam comigo, tudo, porque eram, alegadamente, esquerdistas e não permitiram a continuidade de tal investimento ». «O site ficou inactivo mas apenas em termos de actualizações. Contudo, ficou no servidor porque era um projecto público, pago com dinheiros públicos e tinha que estar alojado no servidor», argumenta, acrescentando que, ele próprio o actualizava — e pagava as custas do seu bolso.
«Chefe da situação não gosta de mim»
O Professor Catedrático lembra que «estamos a falar de um caso grave que se está a passar numa escola pública e que por acaso se chama Universidade Técnica de Lisboa». «Recentemente decidiram não gostar de mim — uma das vozes da oposição — e a verdade é que houve um professor bibliotecário nomeado que iria reformular o site mas a primeira coisa que fez foi apagar os dados do CEPP no servidor», denuncia.
«Como cidadão português, obviamente que não me sinto bem. Salvaguardei os dados para salvar o património cultural. Acho gravíssimo que um burocrata qualquer com empresas de “outsourcing” ou funcionários a recibo verde, que não têm responsabilidade sequer disciplinar de um funcionário público, usurpem princípios e bens públicos tão facilmente», lamenta.
E questiona: «se fazem isto a um Professor Catedrático, coordenador das áreas científicas de Relações Internacionais e de Ciência Política, o que é que não fazem a um desgraçado de um assistente ou de um monitor?».
Recorda que compete ao Estado português e aos serviços públicos «o dever de dar o exemplo»: «tenho obrigação moral de dizer, perante os meus colegas que um Professor Catedrático tem que dar o exemplo. O exemplo de não ter medo porque a pior coisa que pode acontecer num País é não haver homens livres. E o exemplo deve vir de cima».
E acusa: «o que certos donos do poder querem é criar um ambiente de servidão voluntária para sermos todos uns escravos doces». E sublinha que «a culpa dos autoritarismos, totalitarismos e compadrios é de não haver revolta. Se conseguirmos espremer, gota a gota, cada um dos escravos que temos dentro de nós, seremos homens e mulheres livres».
«Truque do pré-totalitário em nome da técnica»
Afirma que, neste caso concreto, «está em causa a Universidade Técnica de Lisboa — a que pertence o meu Instituto — que é, curiosamente, a matriz da técnica e da informática e situações como esta não podem repetir-se». Todavia, lembra que «casos como este acontecem em todo o lado na Função Pública»: «estamos a afastar as competências e a criar os subservientes».
E vai ainda mais longe: «como é que garantimos a liberdade académica de ensinar e aprender e como é que a lei garante a manutenção em liberdade de consulta universal no arquivo informático? Estamos a falar de um caso que seria igual a porem lixívia em ¾ da Torre do Tombo ou fazerem arder uma estante de livros de uma biblioteca pública».
Maltez frisa que o CEPP «era essencialmente um site de memória política do século XX. Aquilo não é de ninguém, mas sim de 100 anos de história. E eu resistirei até à última gota de liberdade académica».
Por tudo isto Maltez garante que vai apresentar queixa no DIAP. Contra quem? À pergunta, responde peremptoriamente: «contra o Estado. Tudo, porque a lei portuguesa tem algumas lacunas na defesa destes modelos e na reposição imediata da legalidade».
«O que estão a fazer é o habitual truque do pré-totalitário e, em nome da técnica, querem obrigar alguém a ser servil. Eu não o serei», conclui, sentindo-se envergonhado «com este colectivismo de seita em que a culpa morre sempre solteira».
Adelino Maltez diz que antes de denunciar o ataque ao CEPP, comunicou o sucedido ao reitor do ISCSP, e pediu uma audiência, marcada para a próxima semana. Entretanto, o presidente do Conselho Directivo do ISCSP vai instaurar um inquérito com eventuais consequências disciplinares a Maltez, na sequência das denúncias sobre a destruição do arquivo «online» do CEPP e da eventualidade, ponderada por Maltez, em recorrer ao Departamento de Investigação e Acção Penal.
Resta ainda acrescentar que, à hora de fecho desta edição, os arquivos do CEPP já tinham sido repostos.
Em Caixa
Adelino Maltez: um homem livre!
José Adelino Maltez, conhecido Professor Catedrático e politólogo, nasceu em Coimbra e foi na cidade dos estudantes que se licenciou em Direito, entre 1969 e 1974. Iniciou a actividade docente como Assistente da Faculdade de Direito de Lisboa, de 1977 a 1985, onde colaborou no âmbito das cadeiras de História das Instituições e de História do Direito. Actualmente docente no ISCSP, foi nesta escola que foi assistente de Adriano Moreira no âmbito das cadeiras de Ciência Política, Doutrinas Políticas e Sociais e Teoria das Relações Internacionais.
Doutorado em 1990 com uma dissertação sobre «O Ensaio sobre o Problema do Estado», Maltez é dos poucos homens «livres» deste País e que pouco ou nada se importa com o que os outros dele pensam, como afirmou ao nosso jornal. O homem livre, no pensamento e nas ideias, vive, agora, na pele, o sabor amargo da destruição de anos de trabalho e daquele que é considerado um dos maiores arquivos de pensamento político do País, disponível «online» até há poucos dias.
Foto Maltez — Partilha — Pasta Adelino Maltez, com a legenda:
Adelino Maltez diz que resistirá «até à última gota de liberdade académica»