Largando certo exílio interno face aos donos do poder do neocorporativismo universitário, fazer um breve esboço avaliativo da presente ciência política portuguesa.
Tal como há cem anos, a democracia portuguesa volta a enredar-se na secura processualista das chicanas sobre as regras do jogo, predominando a legitimação pelo procedimento sobre as raízes morais e o sentido cívico, ao mesmo tempo que um inevitável regime de porta aberta e de internacionalização, sem as fundações de uma assumida autonomia cultural, propicia formas miméticas de colonização cultural.
Esta continuidade psicológica de um povo e esta permanência dos processos de formação das elites, com as inevitáveis degenerescências classistas dos smart set e jet set, talvez impusesse que os amadores e profissionais da política à portuguesa fossem sujeitos à leitura obrigatória do Portugal Contemporâneo de Joaquim Pedro Oliveira Martins, do Vale de Josafat de Raúl Brandão e dos vários volumes da Conta Corrente de Virgílio Ferreira. Pelo menos, poderia contribuir-se para a não repetição daquelas atitudes que conduzem ao ridículo …
3
Resta-nos a esperança de um rei Pedro da Traslândia que proclame: venho nu, cheio de boa fé e de boa vontade. Perdi toda a ciência que tinha…, que julgava ter, e que nem era ciência nem era sabedoria. Agora não sei quase nada. Vou tentar aprender a cada instante com as realidades interiores e exteriores. Um rei Pedro, aprendendo com aquele Profeta que volta a falar num novo Evangelho sem palavras, ideias e doutrinas: Enchestes os vossos livros de letras; as letras mataram o Espírito! Viveis soterrados em fórmulas.
4
se acentuam os ancestrais vícios de uma certa guerra civil ideológica típica do Portugal Contemporâneo, do qual ainda não foi possível eliminar algumas heranças inquisitoriais, bem como os subsequentes traumatismos resultantes das rupturas revolucionárias e das ilusões construtivistas, com as suas procuras de um homem novo feitas a golpes de cacete ou de decreto, as inevitáveis doutrinas oficiais e o eventual saneamento dos que não se integram na nova ordem. Toda essa herança do burguesismo iluminista que supôs poder o homem ser dono e senhor da natureza, dono e senhor da sociedade e dono e senhor da história, essa ilusão de revolução, de homem novo, tão negativa como o seu irmão-inimigo contra-revolucionário, adepto de uma revolução ao contrário ou de um andar para trás reaccionário.
Ora, uma das consequências habituais do estabelecimento de novas intelligentzias oficiais consiste na expulsão dos universitários que não jurem fidelidade ao novo estado de coisas e no estabelecimento, directo ou indirecto de livros únicos, conforme o modelo da reforma pombalina da universidade e dos subsequentes saneamentos de lentes liberais pelos miguelistas ou de lentes miguelistas pelos liberais, num semear de intolerância que continuou por ocasião da instauração da República, da institucionalização do Estado Novo ou do lançamento do processo revolucionário em curso dos anos de 1974-1975.
Todos estes traumatismos provocaram a falta de serena continuidade reflexiva e, consequentemente, a impossibilidade de evolução espontânea, gerando medo onde deveria estar sentido de escola e subserviência onde deveria frutificar a lealdade, ao mesmo tempo que se desenvolvia uma acrítica aceitação de construtivismos que cheirassem a moda ou revelassem sinais de força.
Mesmo na actividade intelectual, dos que formalmente deveriam praticar a necessária liberdade de cátedra, eis que, muitas vezes, surgem recônditos medos ou incompreensíveis cedências à ilusão do mediático.
5
Muitas vezes, fomos um país que, desprezando a continuidade das instituições históricas e o evolucionismo reformista, foi sendo sucessivamente decepado, tanto das suas raízes como dos posteriores enxertos que voltavam a radicar-se no húmus dos valores permanecentes. A atracção pelo Estado-exíguo tornou-nos numa quase res nullius susceptível de ocupação por uma qualquer minoria militante capaz de controlar a intelligentzia dependente do subsídio estadual, onde os próprios opinion makers se desligaram dos últimos redutos académicos e universitários onde se ousava pensar português. A inevitável colonização cultural e o consequente niilismo não tardaram a chegar, matando a esperança, a vontade de manutenção de uma autonomia cultural e a necessidade de um sustentado programa de formação de elites políticas, culturais e administrativas. Portugal, depois dos exageros de um pretenso Estado Ético e de uma política de espírito ficava bem mais acanhado na sua dimensão intelectual do que no tocante as respectivas dimensões territoriais, populacionais e económicas. O vazio de política levava às tentativas concretizadas de ocupação dessa espaço por jornalistas e por pequenos lobbies de pequenos patrões, pequenos sindicatos e muitos outros exíguos corporativismos de grupos de amigos e de grupos de interesses.
6
Ainda hoje podemos dizer, como Álvaro Ribeiro, que quem não escreve em papel pautado por qualquer ortodoxia, quem não está inscrito numa congregação de elogio-mútuo, quem está disposto a lutar contra a sindicalização do trabalho intelectual que ameaça o pensamento livre pela recíproca defesa das mediocridades e pela agressividade da inveja que se manifesta pela humilhação, corre o risco de nem sequer poder comunicar com outros que gostariam de fugir dos pretensos canalizadores da opinião crítica e da opinião pública.
Quando a opinião crítica quase se reduz às páginas culturais das revistas e semanários de fim de semana que vão traduzindo as últimas novidades do vanguardismo e quando a própria universidade se vai eriçando na sua concha sebenteira ou monografista, corremos o risco de mantermos um arquipélago de inúmeras torres de marfim, insusceptíveis de fecundarem a realidade e de influenciarem os movimentos sociais com um pouco de pensamento. Daí continuarmos refugiados no Vale de Lobos da ficção romanesca e no exercício lírico da poesia, da dramaturgia ou do ensaísmo, onde muitos literatos maiores e menores, apesar de tudo, conseguem transmitir uma corrente que se aproxima do sentimento geral da comunidade.
7
Pode ter razão Gabriel Almond quando fala nas chamadas seitas existentes entre os que estudam a política, mas a respectiva qualificação de direita e esquerda, vive no mundo onde a esquerda tem a humildade de conhecer a direita e não reduz a esquerda àquele conjunto dos que nem sequer tratam de ler o que a chamada direita escreve. Assim, refere uma hard right que, no plano metodológico, é essencialmente descritiva, estatística e experimentalista, apontando os exemplos de V. O. Key, James Buchanan, Gordon Tullock e William Riker, contrapondo-a a uma soft right, marcada por uma miscelânea conservadorista que ataca o iluminismo e o cientismo e colocando Leo Strauss como chefe de fila. Na banda da direita, enumera uma hard left, onde destaca a escola dependencistarepresentada pelo ex-Presidente do Brasil, Fernando Henrique Cardoso, e uma soft left, herdeira da Escola Crítica de Frankfurt.
Contudo, se tentássemos utilizar os critérios de Almond, onde a esquerda e a direita tanto se medem pela dimensão ideológica como pela dimensão metodológica, verificaríamos que, em Portugal, não há campo possível para tal análise. Se achamos salutar que a própria dialéctica empobrecedora de um confronto entre a direita e a esquerda seja superado, sempre preferiríamos que o mesmo se mantivesse, porque o que lhe sucedeu, ou foi o domínio de um dos hemisférios, pelos esmagamento do outro, ou, pior ainda, um vazio niilista.
8
Diremos até que podemos perspectivar a direita e a esquerda em sentido psicológico, como disposições de temperamento. Se há quem considere que a direita prefere a injustiça à desordem, optando pelo primado da moral de responsabilidade, enquanto a esquerda tende a ser marcada pela moral de convicção, acontece que, na prática, os planos podem confundir-se, governos de direita conduzidos por temperamentos de esquerda e revoluções de esquerda feitas por temperamento de direita, para utilizarmos palavras de Jacques Maritain.
Acaba por ser mais importante o modelo dos conformismos estruturais, onde os situacionismos, sejam de esquerda ou de direita, acabam por irmanar-se, enfrentando aqueles que apelam para os valores, sejam de esquerda contra um situacionismo de direita, sejam de direita contra um situacionismo de esquerda. Acresce que a internacionalização das sociedades civis, das relações intergovernamentais e dos próprios modelos económicos, principalmente os resultantes da unificação europeia, podem levar a que governos de contraditórios sinais ideológicos acabem por confundir-se em idênticas misérias e grandezas, pelo que invocações de tribalismos internos podem assumir a dimensão do paradoxo.
Alguns exemplos preocupantes, poderíamos anunciar. Com efeito, até o ancestral confronto universitário português entre o humanismo católico e o humanismo laico, um, tendencialmente marcado pelo nihil obstat e outro, mais ou menos maçónico, depois de se perder nos meandros das teorias da conspiração, deixou de ter sentido.
9
As relações dos intelectuais com a reflexão política em Portugal vivem entre o reviralhismo e o modismo, categorias com que procuramos aportuguesar o againstism e o movimentism de Giovanni Sartori. Com efeito, em Portugal, mesmo as minorias intelectuais com intervenção na política não cessam de viver em rebanho, para, numa curva da estrada, caírem na tentação de serem conselheiras de um qualquer césar de multidões, como ameaçam os neopopulismos de esquerda e de direita.
A power elite à portuguesa já não circula apenas nos passos perdidos, dado que os principais factores de poder deixaram de ser manifestação interna da soberania e mesmo os que dela estão dependentes foram readquiridos por uma nova actualização da classe bancoburocrática que não se reduz apenas ao comunismo burocrático dos funcionários, gestores públicos e dirigentes partidários, entre a Linha de Cascais, a Foz do Douro e os banhos nas praias algarvias, com bisbilhotices nos semanários políticos, lidos pela snobbery dos radical chic e dos young urban profissionals.
Os antigos analistas e comentadores políticos foram substituídos pelos fazedores de uma opinião attrape tout, os quais, mesmo quando têm responsabilidades universitárias, deixam transformar-se em canalizadores da opinião política ou em simples fabricantes de má língua, uns tentando vender a democracia segundo métodos herdados da agit prop social-fascista ou anti-social-fascista, outros levando ao rubro o decadentismo de alguns salões de certa burguesia queirosiana.
O divórcio entre a razão e a emoção, ou, dito por outras palavras, entre o exagero de uma racionalidade racionalista e um global entendimento do simbólico, aberto à racionalidade axiológica, tem levado os cultores da frieza analítica à demagogia e à cedência face às legitimidades carismática e tradicional.
10
Aliás, o nosso sistema político-partidário constitui um sistema de canalização da representação política que corre o risco de desenraizar-se da cultura portuguesa e da sociologia dos portugueses que temos. Está e estará em crise porque, pura e simplesmente, lhe faltam ideias e lhe falta povo, isto é, não tem sustentáculo na vida nem horizonte de sonho. O que leva ao crescente indiferentismo das massas face aos profissionais da política que nele circulam e acirra a tendência do mesmo servir como agente colonizador de ideias estrangeiras, no sentido de estranhas à nossa própria índole. Isto é, continuamos a dar razão a meia dúzia de autores bem lusitanos, desde Joaquim Pedro de Oliveira Martins a Raúl Brandão, desde Ramalho Ortigão ao próprio Fernando Pessoa, desses que, sem catastrofismos, perceberam Portugal nas suas próprias entranhas e que continuarão perenes enquanto os portugueses forem os inveterados portugueses que somos.
11
Os factores de poder que o dito subsistema politico-partidário pode gerir são ínfimos, dado que grande parte da nossa soberania não passa de simples capacidade para gerirmos dependências e interdependências. Da mesma forma, o poder internacional do Estado português não é uma coisa é uma relação, medindo-se menos pela física do poder e mais pela estratégia, pelo que as grandes potencialidades podem transformar-se nas grandes vulnerabilidades.
Por tudo isto, importa ganharmos consciência da nossa dimensão, percebermos que, mesmo integrados na União Europeia, temos de viver com aquilo que cientificamente temos e que não deveríamos viver acima daquilo que produzimos, dado que esse excedente de sociedade de abundância que por aí pulula é artificial, resultando de subsídios dos outros que, longe de significarem solidariedade, apenas constituem contrapartida indemnizatória face aos factores internos de poder que cedemos ao conjunto.
12
Quem não tiver consciência desta realidade, está a perder aquela fibra multissecular que nos deu o essencial do que somos. Aquilo que Herculano, muito simplesmente qualificava como a vontade de sermos independentes. Esse qualquer coisa que nos levou a ser Portugal livre, quatro séculos antes de Maquiavel ter inventado o Estado. Quatro séculos e meio antes de Bodin ter inventado a soberania. Seis séculos antes de começar a balbuciar-se a teoria do princípio das nacionalidades. Essa fibra portuguesa que suscitou 1640, 1820 ou aquela geração que tratou de cantar os heróis do mar por ocasião do Ultimatum.
Tal como sempre, o nosso actual demoliberalismo padece dos males da falta de influência dos intelectuais sobre a actividade política; das manias das falsas elites em confronto com a tentação populista e vanguardista; da falta de tradição partidária em comparação com a enraizada democracia da sociedade civil; da permanente tentação do confronto entre um pretenso Portugal Novo e um real Portugal Velho.
Por tudo isto, a ciência política tem também direito ao desencanto (à Entzaubrung de Weber), a consequência inevitável do desenvolvimento de uma perspectiva racional-normativa, marcada por uma exagerada moral de responsabilidade, num universo ainda carregado de legitimidades tradicionais e carismáticas e que só pode racionalizar-se pelo recurso ao esforço de uma moral de convicção, geradora de uma perspectiva racional-axiológica.
13
Ora, um professor universitário é um funcionário da comunidade, um servus ministerialis, um escravo da função que lhe foi atribuída, mas que ele deve professar, quando, para tanto, sente uma íntimavocação. Não lhe cabe apenas dar aulas e produzir trabalhos de investigação, nem pode, muito endogamicamente, reduzir-se ao claustro das escolas onde exerce a actividade. Pelo contrário, deve procurar contribuir para que a comunidade, de que é funcionário, possa pensar-se a si mesma, tentando que a universidade se aproxime da vida pública. Mas não pode esperar que o poder instalado seja influenciado pelas suas individualíssimas reflexões, nem ter a tentação de se transformar em institucionalizado opinion maker, sempre dependente da contabilidade equilibrista da mistura da esquerda com a direita, com que os patrões da comunicação social fabricam aquela polarização que lhes convém, para continuarem a controlar o centro, dando uma no cravo e outra na ferradura.
Na universidade não se trabalha para o curto prazo, onde funciona o realismo neomaquiavélico, sempre à procura do mediático e do imediato, sempre com a angústia da finitude e sem preocupação com o eterno. Neste sentido, qualquer universitário deve assumir a coragem de ter que estar em minoria, para poder ascender ao estádio da ciência, do conhecimento, o tal nível epistémico que a mera opinião da conjuntura, mas sem a negar, como estímulo.
A universidade só pode ter razão a médio e a longo prazos. Se trabalha nas coisas perenes, tem, contudo, que reflectir a partir das circunstâncias do tempo e do espaço onde se movimenta, porque as essências apenas se realizam através da existência.
Aliás, os mesquinhos detractores dos professores universitários esquecem, quase sempre, este investimento no saber pelo saber, esta consultadoria pública que não cobra honorários nem se integra em gabinetes de projectos subsidiados por fundos públicos, nacionais ou comunitários, onde muitos mercenários se escondem.
Mas quem tem como profissão, e vocação, o pensar a política, só pode procurar aproximar-se de uma qualquer dimensão científica se tentar viver a verdade, dizendo o que, na verdade, pensa. Porque a ciência, enquanto esforço racional que visa fazer ascender a opinião ao conhecimento, não tem que excluir necessariamente o compromisso da opinião, essa força vital nascida de uma concepção do mundo e da vida. Antes pelo contrário!
A autêntica ciência política, enquanto real ciência da política, pode e deve permitir que pessoas livres, com diversas e contraditórias opiniões, assentes nos mais variados subsolos filosóficos, comuniquem entre si, através dos lugares comuns do conhecimento. Mas só há diálogo quando se procuram tais placas giratórias da dialéctica que, tendo como fundações os princípios gerais do pensamento, permitem que as ideias e os valores fecundem criativamente as várias perspectivas das inevitáveis posições parcelares que cada um possui.