Set 22

Entrevista ao Jornal de Negócios

De que forma é que os recentes desenvolvimentos deste caso – revelação do e-mail em que Fernando Lima teria agido alegadamente “a mando do Presidente” e afastamento agora do assessor a poucos dias das eleições – mancham a reputação política de Cavaco Silva?

Cavaco não é Deus nem Nixon. Os recortes do mais recente enredo apenas devem ser a ponta visível de um mais profundo “iceberg”. Aquilo que agora analisamos é apenas uma procissão que não saiu ainda para a praça pública, até porque deve repugnar a alguns actores politicos a mistura do público e do privado … As confrarias apenas assomaram, em procissão, aos passos perdidos do Pátio dos Bichos…

 

Lembra-se de outras alturas no passado (enquanto líder do PSD, primeiro-ministro, candidato presidencial ou Presidente da República) em que a imagem de seriedade de Cavaco Silva tenha sido posta em causa desta maneira? Ou é uma situação nova, uma primeira queda?

Na campanha eleitoral de Fernando Nogueira, Cavaco desmentiu-o publicamente. Nogueira foi derrotado, abandonou a vida política e optou pela actividade bancária.

 

Já há analistas a falar num processo de ‘impeachment’ (impugnação de mandato). É exagerado ou uma possibilidade em aberto?

Cavaco, até agora, é de uma grande coerência. Um dos políticos mais experimentados que continua a insinuar discursos contra os políticos, mantendo aquela boa propaganda que é a de fazer propaganda, mas fingindo que não  faz propaganda.

Este episódio, em que ainda faltará pelo menos uma explicação pública do Presidente no pós-eleições, pode levar Cavaco Silva a não avançar para um segundo mandato em Belém?

Antes dos cenários das recandidaturas, importa saber que governos vamos ter nos próximos dois anos, porque as circunstâncias de crise não permitem que a história se repita. Seria tragédia, antes de ser uma comédia.

Caso resolva candidatar-se às próximas Presidenciais – onde eventualmente poderá enfrentar um candidato consensual à Esquerda – a reeleição de Cavaco Silva fica mais difícil após este caso?

Julgo que as anteriores clivagens de esquerda e de direita irão ser alteradas dramaticamente, a partir do próximo dia 27 de Setembro. Se, em termos eleitorais, se reproduzirem as divisões sociais eurocêntricas de dois terços de uma classe média de remediados (a do Bloco Central) e um terço de excluídos (correspondentes ao BE, PCP e CDS), conforme o dito de Jacques Delors, o equilíbrio do situacionismo entrará em “out of control” e teremos um ciclo de criatividade, com a verdadeira imaginação no poder.

Relativamente ao período eleitoral, o Presidente era apontado até há pouco tempo como um possível garante da estabilidade política, face à fragmentação que as sondagens apontam. Na sequência deste episódio, de que modo é que essa tarefa pode ficar dificultada?

O Presidente não é Deus. Pode pecar e arrepender-se, cair e levantar-se. E precisamos de um bom guardião da Constituição.

Caso se concretizem as estimativas das sondagens – e no cenário do PS ser o partido mais votado mas rejeitar uma coligação com o Bloco; PSD e CDS/PP se entendam e juntos tenham uma percentagem superior aos socialistas – o que fará o Presidente? Essa opção poderá ser agora diferente do que seria antes deste episódio?

Pode não haver coligação entre PS e os partidos não-PSD do hemiciclo. Basta um governo minoritário PS, mesmo que seja sem Sócrates, com dois acordos de entendimento parlamentar com o BE e o PCP em certas questõese muitas cláusulas de salvaguarda. Basta recordar que mesmo o democrata-cristão Andreotti teve um governo apoiado parlamentarmente pelo PCI em plena guerra fria, embora o imediato assassinato de Aldo Moro tenha executado o plano de fundo da “operation chaos”. Aliás, o PSD e o CDS, como secções nacionais da multinacional PPE, estão sem autonomia e teriam de apoiar o PS contra o BE e o PCP em matérias europeias e de segurança global.

O que esperar da relação entre Cavaco Silva e José Sócrates, caso este seja convidado a formar governo? Novamente cooperação institucional no discurso oficial e conflitualidade latente na prática e nas entrelinhas?

Não tarda que voltem ao estado de graça de cooperação estratégica que foi o normal anormal deste ciclo presidencial cavaquista. É mais aquilo que os une do que aquilo que os divide. Temo que o PSD continue a ser espaço de sementeira de eucaliptos providenciais.

 

Set 22

A lucidez de ser ingénuo

Cavaco Silva não é Deus nem Nixon. Pode errar e deve levantar-se, para poder continuar a ser o guardião da Constituição. E no palácio da república em figura humana, vale a pena termos bons exemplos. Mas a procissão ainda não saiu do Pátio dos Bichos. A liberdade de imprensa é, de facto, um bem superior ao respeitinho. E a liberdade de expressão de pensamento, uma necessidade, para podermos denunciar publicamente os erros dos chefes do estadão. As minas e armadilhas fragmentaram-se todas, em sucessivas desfragmentações e importa ter cuidado com as campanhas negras: as vidraças são de todos e todas podem ser quebradas pelo efeito boomerang. Aguardemos o estádio superior de luta de uma campanha que já ultrapassou o nível do belo interregno d’os Gatos, aliás bem menos fedorentos que certas teorias da conspiração e que muitos espiões em autogestão, esses ocultistas que contribuíram para esta remacaízação serôdia da democracia. Porque importa seguir o conselho presidencial, sobre não sermos ingénuos, sobretudo, neste tempo de homens tão lúcidos, onde é imperioso termos a lucidez de continuarmos ingénuos. Julgo que deve terminar o ciclo dos familiaresmoscas e bufos que querem manter o emprego de caça-fascistascaça-comunascaça-pedreiros e caça-jesuítas, esses resíduos sólidos de extrema-esquerda e extrema-direita que nos continuam a poluir!

Set 22

Que venha o indisciplinador colectivo que nos traga a urgente regeneração!

1

O Watergate dos pastéis já deu uns passinhos na Calçada da Ajuda. Mas ainda não se assentou nos bancos de pedra da Praça Afonso de Albuquerque. Remeto para os dois artigos que publiquei no Diário de Notícias. O de hoje, e o que saiu logo que rebentou o petardo. Prefiro ir ao fundo da questão. Para a vagalhota de vulgatas de “intelligence” mal digerida com que pretendem explicar de forma pretensamente científica os chamados mistérios do poder e que nos enredam no mais paranóico dos enredos.

2
Estes ditos omniscientes das sebentas da teoria da conspiração, afinal, apenas sucedem à era dos juridicismos que marcaram a mentirosa razão de Estado da última fase do regime derrubado em 25 de Abril de 1974, já dominada pela cultura do Estado de Segurança Nacional, onde se traduzia em calão a NATO, conforme os manuais de planejamento estratégico de Golbery do Couto e Silva, Augusto Pinochet e Kaúlza de Arriaga.

3
Os fantasmas securitários ameaçam continuar a despolitizar o Estado. Mesmo quando invocam protecções místicas de sacristia ou de loja, não têm técnica nem teoria que lhes dê a categoria de monopolistas da alta política e muito menos podem chegar ao entendimento da nebulosa do chamado interesse nacional.

4
Os mais recentes episódios de histeria aconselham prudência a estadistas e líderes políticos e académicos sobre o uso que fazem de tais pretensos ocupantes dos interstícios do poder. Porque alguns deles não passam de míseros e mesquinhos carreiristas e capangas que a inquisição e a bufaria nos deixaram. Podem servir para alimentar sensacionalismos jornalísticos ou paraganonas, com fugas aos segredos de justiça e são o mais sórdido que deixámos crescer em democracia e pluralismo. Logo, há que separar o trigo do joio, antes que apodreçamos todos.

5
Juro que continuo romântico e radical, mas que detesto a revolução e a reacção. E reconheço perfeitamente os irmãos-inimigos que assumiram o situacionismo e nos vão instrumentalizando. Logo, não deixarei de denunciar as duas faces da mesma moeda má que nos vai desvalorizando a todos.

6
Não se iludam: nem a Dra. Manela é um Salazar de saias, nem Sócrates, um qualquer Hugo Chávez. Eles não passam de meros espelhos da nação que somos. De um povão a quem obrigaram a torcer em cobardia, porque lhe adormeceram a honra da coragem, dizendo que, mesmo sem espinha, vale mais um pássaro na mão do que dois a voar.

7
O mal já vem de longe, dessa bolorenta hipocrisia com que a Inquisição nos eliminou a fibra de Quinhentos, quando ainda vivíamos como pensávamos. Das moscas do Intendente que nos deram as Viradeiras, a última das quais durou quase cinquenta anos, em pleno século XX.

8
Mais recentemente, tudo se agravou quando arranjámos colectivismos de seitas que nos deram a ilusão dos PRECs. Quando muitos confundiram os amanhãs que cantam com a varinha de condão do viracasaquismo saneador, da luta de invejas. Ou com o socialismo de consumo dos hipermercados e do betão, de vez em quando embrulhados com o folclore das campanhas eleitorais.

9
Não me deixo enrolar pelos sermões de Marcelo e de Vitorino, ou pelas frases pretensamente assassinas de Mário Soares. Quero ser um bocadinho mais exigente. Não quero ser governado por aposentados e não vejo, nos políticos profissionais alternativos, aquela altura de fins políticos que nos possam conduzir à regeneração.

10
Gostaria que as próximas eleições fossem o necessário golpe de Estado sem efusão de sangue e que a próxima encruzilhada gerasse o urgente indisciplinador colectivo que pusesse fim a esta decadência neocabralista e neofontista, onde políticos honestísismos se deixaram rodear de gente com o perfil exactamente contrário. O Estado de Direito só resiste se as respectivas raízes se revivificarem na confiança pública e, consequentemente, na simples fé do homem comum, nos homens e mulheres de sangue, suor e sonho.