Os merceeiros, os enjoados e os quixotes

Os merceeiros, os enjoados e os quixotes que nos enrascam não assumem que é possível subverter a realidade através da metalinguagem e das erráticas metáforas. Não compreendem esse quanto mais poético, mais real, cantado por Novalis. A poesia sempre foi mais verdade, no sentido de mais filosófico, do que a história, como ensinava Aristóteles. Porque a via do transcendente sempre esteve mais situada nas circunstâncias do lugar e do tempo, do que as utopias e ucronias em que se enreda o pretenso cientismo, aquele que determina só existir aquilo que se pode medir, como as rígidas réguas dos paradigmas, sempre ultrapassáveis. Quem procura manejar o lume da profecia, sem o fazer esvoaçar fora do lume da razão, vive sempre fora do tempo dominante, sobretudo quando procura conjugar o eterno, longe dos que se enredam no paralelograma de forças do passado, sem as necessárias saudades de futuro. Não subscrevem aquele dito de Vieira, segundo o qual só há o verdadeiro fora do tempo. Ou melhor: fora daquilo que os donos do poder absoluta e da dita ciência certa decretam como suas verdades incontestáveis. A realidade sempre foi subvertida pelas autonomias, quando estas assumem que, no princípio, tem de estar o fim, o tal dever-ser que é, das essências que apenas se realizam pelas existências, onde só por dentro das coisas, as coisas realmente são. Todos os decretinos processadores, em nome da ideologia ou do vértice hierárquico, seja ministerialismo, sejam seus sucedâneos, directoristas, presidencialistas ou rectorísticos, temem todos os que praticam o pensar é dizer não, como dizia Alain. Ou que a revolta é bem mais fecunda que a revolução, como vai acrescentar Camus. A essência do homem ocidental sempre foi o individual do indiviso, essa dignidade da pessoa humana. Ou como assinalava Unamuno, a essência do homem ocidental é o ser do contra. Quem experimentou as garras do saneamento e do processamento da persiganga, com que os instalados tentam calar a revolta, não pode admitir que o rolo unidimensional do conformismo nos faça enjoar, sobretudo nesta praia da Europa que sempre foi partida para todas as sete partidas. O sinal do nosso futuro continua a passar pela resistência individual e pelo pensamento crítico da liberdade. Mesmo quando se rejeitam as normalizações impostas pelos pretensos antidogmáticos neodogmáticos, como esses que, perante certo situacionismo, proclamam que têm o monopólio da contestação e assim nos desmobilizam. Os bobos da demagogia, da tirania e da mentira podem alimentar-se desses irmãos-inimigos. Quem quiser continuar mesmo do contra tem que procurar o mais além e antecipar o tempo da revolta.

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