Farpas de 8 de Janeiro de 2012

Os seres vivos divergem da lei da degradação da energia marcante no mundo físico, onde domina a entropia, aquela quantidade de energia que, sendo gasta numa mudança, se torna irrecuperável pelo sistema e fica para sempre na zona do desperdício. Há em certos comentários uma demonstração inequívoca da existência de seres vivos que preferem ser do mundo físico.

Adoro que este mural sirva a alguns de catarse. O mesmo que purga, expressão que em sentido figurado significa libertação. Utilizada pela linguagem freudiana. O eliminar de emoções destrutivas, através da apreciação de uma experiência estética. Agradeço a quem se purga. E que se vê ao espelho.

Há uma lógica curiosa de alguns dos nossos alimentadores do situacionismo, sobretudo do oposicionismo que convém ao situacionismo: os maus de hoje, antigamente eram bons. Os bons, hoje, apenas somos nós. Era como dizermos que o totalitarismo era bom, pena foi haver totalitários, sobretudo os milhões e mortos de mortos por genocídios e democídios. Alguns são tão coerentes que tanto foram militantes do totalitarismo, como aqueles que ainda o são.

Porque pensar é dizer não, nada mais entorpece que o pensamento único que arrasta as correntes dos pretensos bem pensantes. A liberdade sempre foi uma espécie de federação de minorias, especialmente dos que procuram a razão antes do tempo. Ou, como diria Unamuno, o essencial do homem ocidental é ser do contra. Só o futuro nos pode avaliar, desde que se tenha saudade de futuro, isto é, esperança.

Há momentos de encruzilhada psicológica que são excelentes reveladores de algumas mentalidades decretinas e merceeiras, onde a bula do Komintern, a lei de Santos Cabral, a matança de Hitler ou os tribunais de Franco se podem traduzir por obediência ao patrão, folha de contabilidade ou ideologia de nostálgico do cacete, da cavalariça ou do auto de fé, com dispensa do poema, da religião, da crença, da facção ou do sonho. As sementes do totalitarismo já despontam em silvados sem amoras.

E com Trotsky me despeço: “há uma incompatibilidade completa e absoluta, entre o espírito revolucionário e o espírito da pequena burguesa maçónica, instrumento da grande burguesia”. Ouvi isto ontem no meu parlamento.

Foi em 12 de Outubro de 1936, em Salamanca: ” Vencer no es convencer, y hay que convencer, sobre todo, y no puede convencer el odio que no deja lugar para la compasión”. Falava Miguel de Unamuno na sua universidade. Um animal de cavalariça logo berrou :”Viva la muerte!” . Unamuno respondeu: “Acabo de oír el grito negrófilo de “Viva la muerte!”. Esto me suena lo mismo que “Muera la vida!”. Y yo, que he pasado toda la vida creando paradojas que provocaron el enojo de quienes no las comprendieron, he de deciros, con autoridad en la materia, que esta ridícula paradoja que me parece repelente. Puesto que fue proclamada en homenaje al último orador, entiendo que fue dirigida a él, si bien de una forma excesiva y tortuosa, como testimonio de que el mismo es un símbolo de la muerte.” Furioso, Millán gritou:”Muera la inteligencia!” José Maria Pemán, intelectual oficioso, logo exclamou: “No! Viva la inteligencia! Mueran los malos intelectuales!” Unamuno acrescentou: “Éste es el templo de la inteligencia! ¡Y yo soy su supremo sacerdote! Vosotros estáis profanando su sagrado recinto. Yo siempre he sido , diga lo que diga el proverbio, un profeta en mi propio país. Venceréis, pero no convenceréis, porque convencer significa persuadir, y para persuadir necesitáis algo que os falta: razón y derecho en la lucha”.

As nações e as outras comunidades políticas de dimensão patriótica, sejam cidades, reinos ou repúblicas, correspondem à terceira potência da alma, inventariada por Platão, a imaginação. São comunidades em torno das coisas que se amam, correspondendo à razão complexa e não apenas à mera razão finalística, a dos chamados rácios. Mas exigem a vontade de sermos, ou continuarmos independentes. Nascem, crescem e podem morrer. Uma das causas da morte anunciada é faltarem poetas que movam os povos.

Quando falta o amor que nos elevou da casa, ou empresa, à política, pode voltar o chefe da casa, aquilo que, em grego, chamavam déspota e, em romano, dominus, ou dono, e chegar o principado, ou império. E de vez em quando, há repúblicas que regressam ao doméstico, quando cedem ao pai tirano, ou quando esquecem que inventámos a política para deixarmos de ter um dono. Reparo que, por cá, muitos têm saudades do patrão que usurpou a cidadania. É sinal de regresso ao feudalismo.

O processo de terraplanagem dos símbolos libertadores dos indivíduos e das pátrias, que está em curso, não se insere em nenhuma campanha. É apenas um revelador dos vermes que nos ocuparam a cidade, chamando pensamento à unidimensionalização da complexidade do comunitário e às representações que o iluminam através dos símbolos.

Um dos meus mestres, Luís da Silva Mousinho de Albuquerque, que morreu em combate na Patuleia, contra a tirania, proclamou: “Podem as nações ter a faculdade de renascer pela reacção contra a força; mas da gangrena moral ninguém ressurge, não é essa gangrena uma das fermentações tumultuosas que transformam uns produtos em outros; é a fermentação pútrida, que destrói radicalmente o ser orgânico, que desagrega, que dispersa os átomos componentes.”~

O mesmo Luís da Silva Mousinho de Albuquerque: para quem “o princípio único de toda a Política é a Moral. Finanças, interesses materiais, formas de Governo, tudo é adventício, tudo é subordinado a esse princípio único. Tudo são entidades secundárias, tudo são acessórios do edifício da existência social. O valor fundamental é a independência portuguesa e o carácter nacional, importando servir o Estado…o Estado, a República…este dever todo moral, todo patriótico”.Por isso, há que assumir “uma bandeira nacional, que seja excêntrica a todas as paixões, a todos os ódios, a todas as vinganças, em nome do desejo do povo que não aspira à governança, mas sim à felicidade”. Belos Patuleias!

Mestre Alexandre: “Que a tirania de dez milhões se exerça sobre um indivíduo, que a de um se exerça sobre dez milhões deles, é sempre a tirania, é sempre uma coisa abominável”. Temendo o regresso a um regime que tratou de “inventar a idolatria do algarismo; e cobrindo com a capa de púrpura a mais ruim das paixões, a inveja, enfeitou-a com um vago helenismo.”

Um excelente trabalho de investigação: a relação da lista dos membros da comissão de honra das candidaturas presidenciais vitoriosas e os lugares de nomeação nas empresas e companhias de regime. Com reportagem em directo nas televisões das reuniões não rituais que precederam o processo. Ou de como os sinais de fumo não exigem a presença dos habituais bombeiros. É tudo um fogo que arde sem se ver. Além disso, estamos perante relações privadas, sem actas do conselho de ministros.

O poder em Portugal é uma coisa que se conquista, não é ainda uma relação estratégica entre a comunidade e o aparelho de poder. Logo, vigora o velho “spoil system”, com a tradução em calão do mais antigo sistema de razia, do árabe ghazya.

Tudo o que foram instituições de igualização social na luta contra a estratificação do “Ancien Régime”, isto é, o que estava antes de Mouzinho da Silveira, estão, lentamente a ser comprimidas. Foi a tropa, foi a universidade, foram os magistrados, foram os funcionários públicos, são os partidos, são outras associações morais e cívicas, não tarda que seja a igreja. Não é a esquerda contra a direita, os socialistas contra os liberais, ou o público contra o privado, mas o que esteve por trás das próprias rixas de Campo de Ourique, o partido dos fidalgos (não dos nobres) contra o partido dos ditos funcionários, o do Portugal Novo. A própria democracia ameaça ser ocupada, através dos tradicionais inocentes úteis que os donos do poder apenas usam como feitores.

Por acaso estou a preparar um texto sobre a matéria, para conferência que irei proferir no dia 30 de Janeiro, nas cerimónias integradas no centenário do Instituto Superior Técnico. Claro que não fui convidado por nenhuma oficialidade conselheira da escola onde sou decano.

O problema em Portugal está nas canalizações. Sobretudo nas representativas. Por causa dos curto-circuitos e dos comandantes no fornecimento de energia. Gostam imenso da casa dos segredos, da história da carochinha, do papão e da teoria da conspiração. Dá “share”. Mas a gula que faz inchar também leva a rã a rebentar, quando quer imitar o boi sagrado.

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