Declarações de Cavaco levantam dúvidas para o resto do mandato
Constitucionalistas dizem que Cavaco “minimizou” os poderes de Presidente da República e que isso pode pôr em causa a sua actuação durante o resto do mandato
O Presidente da República escudou-se ontem na Constituição para justificar as críticas que fez a José Sócrates. Cavaco Silva deu a entender que o ex-primeiro–ministro tinha violado o dever de informação ao Presidente para justificar as acusações de “falta de lealdade” (ver caixa). Mas se o Presidente se justifica com uma violação ao texto fundamental, porque não demitiu então José Sócrates? A dúvida ficou no ar e, para os constitucionalistas e politólogos ouvidos pelo i, o Presidente minimizou os seus poderes, o que levanta “dúvidas” para o resto do mandato.
Para o constitucionalista Guilherme da Fonseca houve uma “minimização dos poderes do Presidente da República”, uma vez que Cavaco “devia ter tido presente na altura a norma da Constituição que agora invoca e avançado publicamente”, refere ao i.
O constitucionalista Paulo Otero partilha da mesma opinião e afirma que o Presidente “não exerceu os seus poderes e não teve um papel activo”. “O que fica para a opinião pública é que temos um Presidente que, na altura certa em que deve exercer os seus poderes, não faz nada”, diz Otero. Até porque, acrescenta o constitucionalista, se o Presidente tem o dever de ser informado, também tem o dever de “pedir informações”. E questiona: “Será que hoje não se passa algo que só vamos saber daqui a um ano?” Uma dúvida também lançada por Marcelo Rebelo de Sousa: “Para o futuro, se houver deslealdade, [Cavaco] não admite e não conta nada aos portugueses.” Isso sim, “é grave”, acrescentou o conselheiro de Estado, que no comentário habitual na TVI não poupou críticas ao prefácio presidencial .
Tudo começou com o desabafo do Presidente da República, que escreveu no prefácio do livro “Roteiros VI” que José Sócrates não lhe deu conhecimento prévio do chamado “PEC IV” e que isso foi uma “deslealdade institucional que ficará registada na história da nossa democracia”.
Para Cavaco, Sócrates falhou no dever constitucional de informar o Presidente – uma interpretação que o PS contraria. O deputado Vitalino Canas defendeu ontem que a norma da Constituição que Cavaco invoca agora “deixa ao primeiro-ministro uma margem muito ampla de decisão sobre o modo, o tempo e o grau de pormenor desse dever de informação ao Presidente da República”.
ESCRUTÍNIO POLÍTICO Além das interpretações ao nível da Constituição, as críticas de Cavaco foram escrutinadas politicamente. O constitucionalista e eurodeputado do PS Vital Moreira afirma que Sócrates devia ter informado “previamente” o Presidente sobre o PEC IV. Mas considera ao i que as declarações, feitas tantos meses depois, foram “mesquinhas e vingativas”. “Na altura não disse nada e agora vem falar como se de um crime de lesa-pátria se tratasse”, critica.
Já para o politólogo António Costa Pinto, Cavaco “perdeu a legitimidade” de falar sobre o assunto quando há um ano decidiu não fazer disso “um caso político”. “Ou actuava na altura ou então só devia ter referido isso nas suas memórias, quando estivesse fora do activo”, diz. Também o politólogo Adelino Maltez, para quem estas declarações foram “um erro crasso”, recorda que Cavaco “foi eleito para ser Presidente e não para escrever memórias ou ser historiador”.
A “falta de lealdade” de que Cavaco acusa Sócrates pode assim ter um efeito de ricochete. Para Guilherme da Fonseca houve também uma “deslealdade” por parte do Presidente da República “para com os portugueses, porque devia ter tomado uma posição na altura e não esperar pela melhor oportunidade para o dizer”, afirma.
Para o futuro fica uma certeza: este tipo de questões não favorecem a popularidade do Presidente da República e podem suscitar “dúvidas” no decorrer do mandato, considera Costa Pinto, secundado por Adelino Maltez, que lembra que este já é o Presidente com “menos confiança” junto dos portugueses.